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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A cidade dos sete planetas

REVISTA : "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 325 - Ano : 1989 - pág. 284

Por Polo Noel Atan

Em síntese : A "Ordem dos 49" apresenta-se como continuadora dos planos de Polo Noel Atan. Sete seres extra-terrestres terão doutrinado este escritor para que colabore com eles na instauração da paz e do amor sobre a Terra. Tendo visitado a "Cidade dos Sete Planetas" na Cordilheira dos Andes, maravilhoso acampamento de seres espaciais, Polo Atan foi solicitado por eles para difundir na Terra o anúncio de "uma Fraternidade Autêntica alicerçada na Grande Verdade de Unidade Mental e Espiritual". O vidente Polo resolveu escrever suas experiências na Cidade dos Sete Planetas em livro do mesmo título, que vem a ser a razão de ser e a cartilha básica da "Ordem dos 49" (49, porque Polo viu 48 seres espaciais, aos quais ele se agrega como o 49º companheiro).

A "Ordem dos 49" ou a "Ação Mental Interplanetária" foi fundada em 22/10/1977, para dar continuidade às experiências de Polo Noel Atan (pseudônimo?), que diz ter estado em contato com seres extra-terrestres na Cidade dos Sete Planetas, situada na Cordilheira dos Andes. Os seres espaciais disseram a Polo que vieram à Terra para ajudar a humanidade a deixar as guerras e o ódio para no futuro viver o amor, e pediram a Polo Noel Atan : "Ajude-nos a ajudar vocês!" Ora a Ordem dos 49 tem precisamente a finalidade de propagar as revelações e os planos dos extra-terrestres e arregimentar os homens para a colaboração. A designação "Ordem dos 49" se deve provavelmente ao texto de que Polo diz ter estado com 48 seres espaciais (homens interplanetários, conforme a p. 229 do seu livro); o 49º seria o próprio Polo. A Ordem declara não ter vínculos religiosos nem políticos; não proibe as crenças religiosas de seus membros, não exige juramentos nem possui segredos. Aceita candidatos de qualquer raça, cor, religião, cultura ou conduta moral.

O livro básico da "Ordem dos 49" intitula-se "A Cidade dos Sete Planetas".1 Narra o primeiro contato que Polo diz ter tido com os extra-terrestres, e propõe as idéias inspiradoras da Ordem. À guisa da informação, passamos a transmitir, nas páginas subseqüentes, o conteúdo de tal escrito, ao que acrescentaremos breve comentário.

1. O conteúdo do livro
Polo Noel Atan diz que certa vez, tendo ido à Amazônia como turista, foi colhido por seres estranhos que o levaram à Cordilheira dos Andes, onde encontrou uma Cidade Maravilhosa, ou, melhor, o acampamento de seres interplanetários, oriundos de outros planetas e destinados a promover a paz e o amor sobre a Terra.

A princípio, Polo assustou-se grandemente, mas foi-se habituando ao respectivo ambiente, fez amizade com sete entidades (seres humanos), vindos cada qual de um planeta, que viviam a quarta dimensão e a realidade do "Homem Quaternário". Falavam com a mente apenas, mas também podiam comunicar-se mediante palavras. Tal cidade teria sido fundada pelos "Grandes Sacerdotes Atlantes", habitantes do pretenso continente "Atlântida", hoje desaparecido 2.

Polo chegou a viajar num disco voador com um dos extra-terrestres; foi instruído por eles a respeito da colaboração que pode e deve prestar à instauração de nova era, em que se estabelecerá a humanidade: "Já estamos na era em que se estabelecerá a Fraternidade Autêntica sobre a face da Terra, alicerçada na Grande Verdade da Unidade Mental e Espiritual" (p. VIII do livro respectivo). O homem deverá passar da terceira para a quarta dimensão e constituir o Reino Hominal, que ficará além dos Reinos mineral, vegetal e animal.

O autor refere-se à Fraternidade Branca, constituída por seres terrestres que habitam lugares recônditos da Terra e acolhem os seres visitantes extra-terrestres.

Finalmente, após instrutivo contato com os extra-terrestres, Polo foi despedido para que voltasse para junto dos seus familiares, com o seguinte programa :

"És um Cálice. O que existe dentro de ti, vai saciar os que estão sedentos. Vai..." (p. 236).

De tal experiência procede a Ordem dos 49, como dito.

Pergunta-se agora :

2. Que dizer?

Como se percebe desta breve síntese, o livro é altamente fantasioso. Corresponde ao espontâneo anseio de todo homem, estimulados pela ingratidão dos nossos tempos, de encontrar uma solução para os problemas que atualmente afligem a humanidade: visto que os horizontes terrestres são sombrios, muitas pessoas apelam para intervenções retumbantes do além sobre a Terra; a promessa ou a pretensa narração de tais intervenções desperta nos contemporâneos a esperança já esmorecida pelos males presentes. Verifica-se, porém, que o relato de Polo Noel Atan é muito mais imaginoso e fantasista do que lógico e historicamente verossímil. A tal Cidade Maravilhosa é uma utopia, um sonho projetado sobre a Cordilheira dos Andes, sem que haja provas de sua existência nem possibilidade de averiguação da proposição.

A mentalidade do autor está impregnada de pensamento ocultista: Polo diz que conheceu o que ninguém mais conhece entre os mortais terrestres. Além disto, usa terminologia confusa no tocante à Religião:

Fala de "Entidades Divinas vindas à Terra" (p. 10); fala do "Grande Arquiteto do Universo, Deus" (p. 244); fala do "Mestre dos Mestres Jesus Cristo" (p. 244); fala também de "Fagulha Divina, sede energética da força cósmica e quarto aspecto do homem" (p. 244); fala da "Mente Total, Deus" (p. 244) ... Tais expressões têm sabor panteísta, ou seja, derivam-se da corrente de pensamento que identifica entre si a Divindade, o homem e o mundo. Quanto ao título "Grande Arquiteto do Universo", sabe-se que é de origem maçônica.

Em suma, o livro não resiste ao exame da lógica serena e objetiva. É muito mais o fruto da fantasia e da emoção do que do raciocínio e das pesquisas científicas. Poderá impressionar a quem esteja aberto ao maravilhoso desligado de senso crítico, mas não se impõe a quem lhe aplique um mínimo de exigências de sã razão. Aliás, os assuntos ligados à Ufologia ou ao estudo de discos voadores (Unidentified Flying Objects) têm se prestado ao exercício da imaginação entre os adeptos do Espiritismo, para os quais os "desencarnados" habitam planetas distantes e se manifestam aos telúricos para ajudá-los.

1 Edição da Ordem dos 49, 2ª tiragem em 1986. A sede doa Ordem fica em Piracicaba (SP).

2 De acordo com os críticos mais abalizados, a Atlântida nunca existiu; ela se deriva de falsa interpretação de escritos de Platão. Ver a propósito PR 256/1981, pp. 184-188.





domingo, 30 de janeiro de 2011

A pérola preciosa - EB

Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"

D. Estevão Bettencourt, Osb

Nº 508, Ano 2004, Página 433

(Mt 13, 45s)

Jesus compara o Reino dos Céus a uma pérola preciosa que um mercador descobriu e adquiriu em troca de todos os seus bens (Mt 13, 45s).

Era muito caro aos antigos o simbolismo da pérola, pois ela é algo de misterioso: muito bela, mas escondida no mar, dentro de uma ostra. Os antigos eram levados a crer que tal realidade resultava de um portento... portento que ocorre quando um raio de sol consegue penetrar na água do oceano e a torna fecunda. A pérola assim seria o fruto do casamento do fogo com a água; aí estaria a explicação do seu valor.

Transpondo este simbolismo para a esfera cristã, verificamos que tem muitos significados. Antes do mais diremos que Cristo é a pérola preciosa por excelência, pois tem origem na união de Deus Filho todo-poderoso com a frágil natureza humana, união na qual ele é o Esposo e ele a esposa.

O reino dos céus - que tem início no coração de cada cristão - prolonga o portento, apresentando dois aspectos:

1) é paradoxal, com paradoxal é, para "o bom senso humano", o plano de Deus. Diria São Paulo: "Trazemos um tesouro em vaso de argila" (2Cor 4,7). É o Imortal dentro do mortal, o Novo dentro do velho, o Já dentro do ainda não.

2) A pérola está oculta dentro de uma concha no fundo do mar, de modo que só quem olha em profundidade a descobre. Isto quer dizer que somente a fé percebe o tesouro latente no íntimo do cristão; a mera razão humana não o alcança.

Quem toma consciência de que existe esse tesouro latente no íntimo do fiel cristão, dará como fez o mercador da parábola: com grande alegria trocará tudo o que lhe esteja à disposição por aquela pedra preciosa; trocará a multiplicidade dispersiva pela unidade e, embora aparentemente empobrecido, saberá estar mais rico do que antes. Há várias vias ou vocações (o matrimônio, a vida consagrada, o ministério sacerdotal...) para chegar ao pleno gozo da pérola preciosa, mas existe uma só meta para todos. A caminhada pode ter seus momentos difíceis, pois implica orientar-se por valores que os olhos não vêem. Acode, porém, o Apóstolo observando: "O que se vê, é passageiro; o que não se vê é eterno" (2Cor 4, 18). Muito sabiamente diz o Apóstolo três vezes: "O justo vive de fé" (Rm 1, 17; Gl 3, 11; Hb 10, 38). De resto, o tesouro oculto vai-se revelando aos poucos a todo coração sincero e fiel, de tal modo que, ainda caminheiro, o cristão antegoza, de algum modo, a fruição do eterno.

O mês de outubro é o mês do Rosário. Seja cada conta do Rosário o penhor de que o(a) orante mais e mais descobrirá a pérola preciosa que está latente no fundo desse mar que é a Igreja (início do Reino) e que é também o fundo do coração do cristão!



Canibalismo na tradição bíblica? - EB

Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 356 - Ano 1992 - p. 30

Em síntese: Uma reportagem da imprensa contemporânea tencionou demonstrar que "a idéia de canibalismo percorre as tradições judaica e cristã (Folha de São Paulo, 13/08/91). Para fundamentar sua afirmativa, o repórter cita (imprecisamente) textos do Antigo Testamento e do Novo Testamento (Eucaristia!). Ora tal recurso é improcedente em caso nenhum as Sagradas Escrituras oferecem justificativa para a antropofagia: os exemplos citados do Antigo Testamento não são apresentados pela Bíblia como paradigmas, mas como expressões de desespero e desatino da parte de homens e mulheres de Israel. Quanto aos textos do Evangelho relativos à Eucaristia, nada têm que ver com canibalismo, pois incutem a comunhão com a carne e o sangue de Cristo glorificado, ou seja, subtraído às condições terrestres ou a condições de carne de matadouro.

A imprensa, em agosto de 1991, transmitiu a notícia de que Jeffrey Dahmer, "canibal" norte-americano, estava sendo julgado por um tribunal em Milwaukee. Ao comentar o fato, a reportagem, da autoria de Janer Cristaldo, na Folha de São Paulo afirmava que "na verdade Jeffrey Dahmer nada fez senão praticar um gesto que está nos fundamentos da cultura cristã. Mas ainda: é praticado diariamente em todos os países do Ocidente" (Folha de São Paulo, 13/08/1991).

Para fundamentar esta afirmação, vêm citados exemplos do Antigo Testamento, como se encontram em 2Rs 6,28s; Lm 2,20; Ez 5,10; Jr 19,9 e nos relatos do Evangelho que apresentam a S. Eucaristia como sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor Jesus (cf. Mt 26, 26-28 e paralelos). - A notícia jornalística impressiona não pelo acume de perspectiva do repórter, mas pela capacidade de deformar fatos e textos do passado a fim de causar sensacionalismo no público ledor. Examinemos de perto a questão.

Os textos do Antigo Testamento

1. Eis as passagens do Antigo Testamento mencionadas por Janer Cristaldo:

Deuteronômio 28,53: "Na angústia do assédio com que o teu inimigo te apertar, irás comer o fruto do teu ventre: a carne dos filhos e filhas que o Senhor teu Deus te houver dado".

2 Reis 6, 28s: "O rei perguntou a uma mulher da Samaria: "Que te aconteceu?" E ela: "Esta mulher me disse: Entrega teu filho, para que o comamos hoje, e amanhã comeremos o meu. Cozinhamos, pois, o meu filho e o comemos; no dia seguinte, eu lhe disse: Entrega teu filho para o comermos, mas ela ocultou seu filho".

Lamentações 2, 20: "Vê, Senhor, e considera: a quem trataste assim? Irão as mulheres comer o seu fruto, os filhinhos que amimam? Acaso se matará no santuário do Senhor sacerdote e profeta?"

Ezequiel 5, 10: "Os pais devorarão os filhos no meio de ti, e os filhos devorarão os pais (ó Jerusalém!)".

Jeremias 19,9: "Eu farei que eles devorem a carne de seus filhos e a carne de suas filhas; eles se devorarão mutuamente na angustia e na necessidade com que os oprimem os seus inimigos e aqueles que atentam contra a sua vida".

2. Observemos que os textos de Dt 28, 53; 2Rs 6, 28s; Lm 2,20; Ez 5,10 se referem a dias calamitosos, em que os adversários cercaram ou cercariam uma cidade da Terra de Israel, provocando a fome dos seus habitantes. Em consequência, as mulheres e os homens comeriam (ou ameaçariam comer) seus filhos. Não se trata, pois, de um hábito vigente no povo bíblico do Antigo Testamento, mas de casos excepcionais, devidos ao desespero de populações sitiadas e famintas. Nem são exceções aprovadas ou ratificadas pelo auto sagrado que as refere; são, antes, atitudes que contradizem à Lei de Moisés, onde se lê? "Não matarás" (Ex 20, 13) - atitudes, portanto, que não podem ser tomadas como paradigmas ou como justificativas de canibalismo moderno.

3. Quanto ao texto de Jeremias, refere-se às mesmas circunstâncias; apenas chama a atenção a locução "Farei que eles devorem a carne de seus filhos...". - Esta expressão não significa que Deus havia de preceituar a antropofagia - o que seria contraditório à Lei do próprio Deus: "Não matar". Significa, antes, que a calamidade desencadeada sobre Judá pelos pecados do próprio povo será tal que os pais hão de querer comer a carne dos filhos. O semita não distingue entre causa primeira e causa segunda, mas atribui toda causalidade a Deus. Na verdade, Deus não é, nem pode ser, causa de crimes e pecados; é o homem que os causa e comete, quando se torna vítima de seus próprios desatinos.

4. Fora do povo de Israel era, sim, praticado o canibalismo ou a antropofagia. Tal costume, porém, supunha premissas alheias às dos judeus. Com efeito; vários povos primitivos julgavam que a absorção do sangue ou o consumo do cérebro de uma pessoa falecida comunicaria ao usuário as virtudes (inteligência, habilidades, força...) desse indivíduo. Por isto matavam seres humanos e bebiam seu sangue ainda fresco, pois no sangue estaria a alma ou a fonte das virtualidades da vítima; o sangue era, por vezes, tido como o alimento mais precioso do ser humano. Em outros casos matavam um ser humano, perfuravam-lhe o crânio e retiravam-lhe ou absorviam-lhe o cérebro, julgando que assim participariam dos predicados do defunto. Ora tal costume era abominável aos olhos de Israel e de sua Lei; não se encontram no Antigo Testamento testemunhos que possam fundamentar o canibalismo em nossos dias.

O Novo Testamento

Segundo Janer Cristaldo, no Novo Testamento "o canibalismo é virtude":

"Durante a Santa Ceia, Cristo oferece seu corpo e seu sangue em uma refeição sacrificial, para que os participantes entrem em contato com o sacrifício, comendo do sacrificado. É o que os católicos romanos chamam de transubstanciação. Todo católico, quando comungo, não está bebendo o vinho ou comendo o pão como símbolos do corpo de Cristo. Está, de fato, bebendo o sangue e comendo a carne de Cristo" (reportagem citada).

Na verdade, a fé católica professa a real presença de Cristo (com corpo, sangue, alma e Divindade) no sacramento da Eucaristia. Sob os acidentes do pão e do vinho está o Cristo inteiro, para o alimento da vida espiritual dos cristãos. Esta verdade é expressa nitidamente nos textos do Evangelho:

"Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo-o abençoado, partiu-o e, distribuindo-o aos discípulos, disse: "Tomai e comei, isto é o meu corpo". Depois tomou um cálice e, dando graças, entregou-o dizendo: "Bebei dele todos, pois isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos para a remissão dos pecados" (Mt 26, 26 e paralelos).

João 6,51: "O pão que eu darei, é a minha carne para a vida do mundo... Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue, tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia".

É de notar, porém, algo de muito importante: quando Jesus anunciou aos judeus a entrega do seu Corpo e do seu Sangue como alimento sacramental, os judeus que ouviam, entenderam tal promessa em sentido canibalístico ou antropofágico e se horrorizaram. Respondeu-lhes Jesus:

"Isto vos escandaliza? E quando virdes o Filho do Homem subir aonde estava antes? (...). O espírito é que vivifica, a carne para nada serve. As palavras que vos disse, são espírito e vida" (Jo 6, 61-63).

Tal resposta quer dizer.

Jesus visava a remover um entendimento grosseiro de suas afirmações, o entendimento canibalístico também chamado "cafarnaítico" (porque característico dos ouvintes de Cafarnaum, onde Jesus falava): não se tratava de comer carne enquanto tal (está claro que esta por si não significa o homem) nem de comer a carne do Senhor em suas condições terrestres (como se come a carne do açougue), mas, sim, de receber a carne de Cristo glorificada e elevada aos céus, emancipada das leis do espaço e do tempo. É a carne nessas circunstâncias novas que Jesus chama "espírito"; é espírito, porque está toda penetrada pela Divindade (na verdade, é a Divindade de Cristo que, mediante a carne, vivifica os fiéis na Eucaristia).

A Eucaristia, como alimento sacramental, faz o cristão viver como membro do Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja. Os conceitos de Encarnação e Corpo de Cristo são fundamentais no Cristianismo: o cristão é feito membro do Corpo Místico pelo Batismo e, como tal, é alimentado pelo Corpo Eucarístico de Cristo. Todavia em caso nenhum se trata de carne em condições terrestres, como é a carne do matadouro, mas trata-se de comungar com a carne de Cristo glorificada ou existente em condições muito diversas daquelas que o canibalismo supõe. Por conseguinte, é falso apelar para os textos do Novo Testamento no intuito de basear crimes modernos de antropofagia.

É, não, raro peculiar aos repórteres procurar causar impacto no público, apoiando-se em sofismas ou afirmações superficiais e infundadas; "jogam areia nos olhos do leitor". Especialmente grave é tal prática quando ela versa irreverentemente sobre valores religiosos, que são caros ao público ledor. O fiel católico há de saber discernir os sofismas ou trocadilhos que lhe são apresentados.





A Nova Religiosidade - EB

Revista "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 526 - Ano 2006 - Pág. 169

(JORNAL PALAVRA)

Em síntese: O periódico protestante JORNAL PALAVRA, dezembro 2005, publicou elucidativa reportagem sobre as novas comunidades pentecostais; estão interessadas não propriamente no culto a Deus, mas no serviço ao homem; vão atraindo adeptos (muitas vezes, transitórios) à custa de promessas de prosperidade financeira, cura de moléstias, promoção profissional. (.. Assim se perde a noção de Igreja Corpo de Cristo irrepetível porque fundada pelo próprio Cristo com a promessa de sua assistência infalível.

O periódico protestante JORNAL PALAVRA, edição de dezembro 2005 aborda "a nova religiosidade" presente nas novas denominações do protestantismo brasileiro. Em poucas palavras esta consiste em servir ao homem, prometendo-lhe maravilhas, mais do que cultuar a Deus. Em relevo aí se lê:
"Sem conceito de membresia nestas novas igrejas os freqüentadores tornam-se consumidores altamente infiéis".
"As pessoas tinham medo do inferno. Hoje, quem acredita no inferno?"

Dilui-se assim a noção de Igreja Corpo de Cristo e irrepetível, porque fundada pelo próprio Senhor Jesus.

A seguir, serão transcritos os trechos mais significativos da reportagem, aos quais serão propostos alguns comentários.

Depoimentos

O pastor Osmar Ludovico da Silva, conferencista residente na Paraíba "lamenta que muitas igrejas evangélicas estejam perdendo o foco em Jesus e o comprometimento com seus ensinamentos. Em função desse distanciamento do Evangelho, mensagens equivocadas estão sendo divulgadas nos púlpitos. 'Apresentam um Jesus Cristo atraente, prometem a salvação dos céus e a prosperidade na terra, sem precisar renunciar a nada. Palavras como sacrifício, pecado, arrependimento, negar-se a si mesmo foram substituídas por decretar, conquistar, saquear. Com isso, tornamos nossas igrejas prestadoras de serviços religiosos. Pregadores ungidos e comunicativos, apoio da mídia, cultos bem produzidos, testemunho de convertidos famosos, tudo isto para segurar os fiéis ariscos, prontos para criticar e mudar de igreja quando contrariados", dispara Ludovico".

"Análise semelhante faz o sociólogo cristão André Botelho. Assim como o pastor Ludovico, ele pensa que muitos crentes estão à procura de mediadores de salvação, pequenos deuses intercessores. E como aqui, no Brasil, muitas pessoas já tiveram contato com práticas de macumba, simpatias, etc, acabam buscando nas igrejas um paralelo estreito com esses ritos populares. 'Água ungida, rosa, sal grosso abençoado, chave para pôr atrás da porta, entre outros. Esse não é o costume do protestantismo tradicional brasileiro, religião racional. Mas o problema não está apenas nos apetrechos espirituais vendidos por troca de bênçãos nas igrejas, está também no esvaziamento da condição e do poder de pregar o genuíno Evangelho', acredita o sociólogo que vai mais além, 'para quem não se garante em pregar a Palavra, tem que inventar um monte de coisas, ainda que isso sacrifique a Verdade que liberta. Posso concordar com táticas ou marketing para atrair pessoas, mas não posso concordar com o esvaziamento bíblico dos cultos e das pregações na Igreja Evangélica. O melhor seria alguns movimentos terem coragem de se nomearem como quisessem, menos Igreja Evangélica. Talvez, fast-bless ou qualquer coisa que lembre o ramo das foods', ironiza.
E essa característica de enxergar os membros como consumidores também preocupa o Pastor da Igreja Presbiteriana Chácara da Primavera em Campinas (SP), Ricardo Agreste. Ele lamenta que tais igrejas estejam divulgando um Evangelho distorcido e distante da verdade. 'Estas novas igrejas não trabalham com o conceito de membresia. Por conta disso, os freqüentadores tornam-se consumidores e altamente infiéis. Assim que a igreja passa a não atender suas necessidades, eles mudam com a mesma facilidade que mudamos de restaurante quando nos chateamos com o mau serviço prestado por alguém', analisa o Pastor que considera, 'Por outro lado, homens e mulheres do mundo contemporâneo têm certa resistência a este modelo antigo de 'membresia'. Eles se engajam a causas, mas precisam de mais tempo para se filiarem a organizações".

Explica o radialista Malta Júnior:

"Quanto às distorções nas pregações, ele pensa que partem de 'líderes preocupados em encher igrejas e sabem que oferecendo cultos com promessas imediatistas, conseguem ter lotação de público, ainda que momentaneamente', o que ele lamenta".

Comentando

2.1. Subjetivismo

O subjetivismo que está na raiz dessa diluição da mensagem cristã, tem sua origem no princípio do livre exame da Bíblia apregoado por Martinho Lutero: cada crente é livre para proclamar, em nome da Bíblia, o que lhe pareça ser Palavra de Deus. A interpretação da Bíblia carece então de todo referencial objetivo e é encaminhada muitas vezes de acordo com as emoções e a fantasia do crente. A Religião fica sendo teocêntrica em aparência, mas na realidade se torna antropocêntrica, distanciada do seu teor bíblico original, que é o de dar glória a Deus,... glória a Deus, que redunda em santificação e plena realização da criatura.

Jesus ensinou-nos, sim, a pedir o pão de cada dia, ou seja, a solução de nossas carências espirituais e materiais, mas só depois de havermos pedido que o nome de Deus seja reconhecido como santo no mundo inteiro, venha o Reino de Deus, seja feita a vontade do Pai assim na terra como no céu. Não é ilícito solicitar graças pessoais, mas a Religião não se deve tornar, por causa disto, um Pronto-Socorro ou um meio mágico de atender ao homem.

2.2. Igreja Corpo de Cristo

Quem lê os escritos do Novo Testamento, verifica que Jesus não quis deixar sua mensagem entregue ao léu ou ao arbítrio de cada discípulo. Muito ao contrário.

- Jesus fundou a "sua (minha)" Igreja: Mt 16, 16-19; Lc 22, 31s; Jo 21, 15-17;

- quis dar-lhe uma estrutura jurídica encabeçada por Pedro e pelos Apóstolos unidos a Pedro: Mt 16, 17-19; Mt 18, 18;

- quis que os discípulos vivam em comunhão entre si, de tal modo que haja correção fraterna e apelo às autoridades da Igreja em casos de mais difícil relacionamento.

"Se o teu irmão pecar, vai corrigi-lo a sós. Se ele te ouvir, ganhaste teu irmão. Se não de ouvir, toma contigo mais uma ou duas pessoas para que toda a questão seja decidida pela palavra de duas ou três testemunhas.

Caso não lhes der ouvido, dize-o à Igreja. Se nem mesmo a Igreja der ouvido, trata-o como o gentio ou o publicano" (Mt 18, 15-17).

São Paulo é muito enfático, supondo o cristão a viver sua vida de filho de Deus na Igreja, que é o Corpo de Cristo; neste há comunhão de vida entre os cristãos e interdependência. Veja-se a explicitação da Imagem do Corpo em 1Cor 12, 12-27, imagem que assim se encerra: "Vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros, cada um por sua parte".

Quem não se comporta à altura desta dignidade, é excomungado (pena que deve ser dolorosa para o cristão precisamente porque o isola); ver 1Cor 5, 1-5; 2 Cor 2, 5-12.

Os Atos dos Apóstolos mostram o desdobramento da vivência cristã dentro da Igreja:

At 4, 34s: "Não havia entre eles necessitado algum. De fato, os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam o valor da venda, e o depunham aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se então a cada um conforme a sua necessidade".

At 6, 1-6: "Naqueles dias, aumentando o número dos discípulos, surgiram murmurações dos helenistas contra os hebreus. Isto porque, diziam aqueles, suas viúvas estavam sendo esquecidas na distribuição diária. Os Doze convocaram então a multidão dos discípulos e disseram: 'Não é conveniente que abandonemos a Palavra de Deus para servir às mesas. Procurai, antes, entre vós, irmãos, sete homens de boa reputação, repletos do Espírito e de sabedoria, e nós os encarregaremos desta tarefa. Quanto a nós, permaneceremos assíduos à oração e ao ministério da Palavra'. A proposta agradou a toda a multidão. E escolheram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timor, Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia. Apresentaram-nos aos Apóstolos e, tendo orado, impuseram-lhes as mãos".

Veja-se também todo o capítulo 15 dos Atos dos Apóstolos, que trata do primeiro Concílio da história, reunido para dirimir uma dúvida que se originara entre os cristãos sobre a obrigatoriedade ou não da Lei de Moisés.

Em linguagem rigorosamente teológica, dir-se-á: o Cristianismo está centrado no regime do Sacramento. - Sacramento é uma realidade sensível que encobre, revela e transmite os dons de Deus aos homens. Assim quis Deus tomar a iniciativa de se comunicar às suas criaturas. O Sacramento primordial é a santíssima humanidade de Cristo, por cujos gestos e palavras passava a graças de Deus; a continuação deste primeiro Sacramento é a Igreja chamada por São Paulo simplesmente "o Corpo de Cristo" (cf. Cl 1, 24). As últimas expressões do sacramento-Cristo-Igreja são os sete ritos chamados "sacramentos" (que acompanham o homem desde o nascer até o morrer, transmitindo-lhe a comunhão de vida com o próprio Deus). Donde se vê que a existência da Igreja visível é tão essencial ao Cristianismo quanto o próprio mistério da Encarnação. Um Cristianismo sem a Igreja instituída por Cristo estaria mutilado.

Conclusão

O reconhecimento, por parte de autores protestantes, de que existe baixo nível doutrinário e interesse de marketing em ganhar adeptos nas novas denominações pentecostais é de grande importância, pois torna a averiguação ainda mais fidedigna. Muita gente se passa para essas comunidades não por causa da respectiva profundidade de doutrina, mas por motivo de interesses pessoais, que não levam a um compromisso com a comunidade; o que impressiona o público é a promessa de "milagres" (que não estão em poder do homem). Neste ponto a Igreja Católica não pode concorrer, pois não lhe é lícito servir-se do tom de pregação dos novos pastores; não é permitido explorar a credulidade do próximo prometendo o que não se pode dar. Deve-se observar que mais vale ter a consciência limpa e honrada do que receber os aplausos quiçá espúrios de uma assembleia.





Apocalipse: Interpretação EB - Parte 1

Revista: "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"

D. Estevão Bettencourt, osb

Nº 397 - Ano 1995 - p. 259
Em síntese: O presente artigo aborda o livro do Apocalipse de São João, que não deve ser tido como fonte de argumentos em prol de iminente fim do mundo. O núcleo do livro dispõe-se em três septenários, que recapitulam toda a história da humanidade e da Igreja sob forma simbolista, mostrando que as calamidades de toda e qualquer época estão englobadas num plano sábio de Deus. Este dirá a última palavra da história; todavia o livro não permite calcular a data da consumação dos tempos ou da segunda vinda de Cristo. O Apocalipse é um livro de reconforto e esperança, e não um livro de apavoramento. Há de ser lido dentro dos parâmetros do respectivo gênero literário apocalíptico, que tem seu estilo e seu linguajar próprios. Quem não leva em conta tais peculiaridades, corre o risco de deduzir do texto sagrado o que ele não quer dizer.

O Apocalipse, com seus símbolos e suas cenas aterradoras, presta-se à tentativa de se calcular a data do fim do mundo e das calamidades que, como se crê, o devem preceder. Visto que a interpretação do livro não é fácil, pois requer critérios precisos deduzidos do próprio gênero literário apocalíptico, vamos, a seguir, apresentar o problema suscitado pelo livro e a solução mais plausível para o mesmo.

Dividiremos a nossa exposição em cinco partes: I. Que é um Apocalipse?; II. O contexto histórico do Apocalipse de São João; III. A interpretação do Apocalipse; IV. Questões especiais; V. Conclusão.

Que é um Apocalipse?

A palavra grega apokálypsis quer dizer revelação. O gênero literário das revelações (ou apocalíptico) teve grande voga entre os judeus nos dois séculos imediatamente anteriores e posteriores a Cristo. A sua origem se deve principalmente ao fato de que os autênticos profetas foram escasseando em Israel após o exílio babilônico (587-538 a.C.); os últimos profetas bíblicos - Ageu, Malaquias e Zacarias - exerceram o seu ministério nos séculos VI e V a.C.

Ora após o séc. V o povo de Israel continuou sujeito ao jugo estrangeiro: retornando do exílio babilônico em 538 a.C., ficou o domínio persa até Alexandre Magno (336-323 a.C.) da Macedônia, que conquistou a terra de Israel, anexando-a ao Império Macedônico. Após a morte do imperador, a Palestina ficou sob os egípcios (dinastia dos Ptolomeus) até o ano de 200 a.C. Nesta data, os sírios ocuparam e dominaram a terra de Israel, constituindo aí o período dos Antíocos ou Selêucidas. Finalmente, os Romanos em 63 a.C. invadiram o território palestinense e impuseram seu jugo aos judeus, jugo que perdurou até que o povo de Israel foi expulso da sua terra em 70 d.C. (queda e ruína de Jerusalém revoltada). Ora nessas duras circunstâncias de vida o povo de Israel, não tendo profeta, sentia necessidade de ser consolado e alentado para não desfalecer. Foi então que os autores judeus se puseram a cultivar mais assiduamente o gênero literário apocalíptico ou da revelação, que tem afinidade com a profecia, mas, na verdade, não se identifica com esta.
O Apocalipse (revelação) tende a incutir aos leitores uma confiança inabalável na Providência Divina. Todavia, em vez de o fazer de maneira escolar ou meramente teórica, exortando à fé, o autor recorre a um artifício: atribui a um famoso personagem bíblico do passado (Enoque, Moisés, Elias, Daniel) ou a um anjo do Senhor revelações proféticas a respeito da época que ele e seus correligionários estão vivendo. Esse personagem famoso antigo descreve os tempos atribulados que os leitos experimentam e assegura que a tormenta passará, devendo a causa de Deus triunfar da facção dos ímpios; estes serão prostrados, pois ocorrerão em breve o juízo final da história e a consumação dos tempos. É isto que dá ao apocalipse a aparência de profecia; todavia note-se que o autor, ao descrever os fatos de sua época (como se tivessem sido preditos por Enoque ou Moisés...), os descreve na base de suas observações e experiências pessoais. O recurso a personagem famoso da antigüidade como revelador da mensagem é artifício próprio do gênero apocalíptico: tende a incutir mais ânimo e esperança nos leitores; com efeito, se o próprio autor sagrado, contemporâneo dos leitores imediatos, predissesse dias melhores, não teria a mesma autoridade que era inegavelmente reconhecida a Enoque, Moisés, Elias, Daniel... Por sua vez, o escritor sagrado tinha fundamentos para consolar seus companheiros perseguidos e predizer a vitória final do bem sobre o mal, porque esta é anunciada por todas as profecias e promessas feitas a Israel. O autor de um apocalipse nada acrescenta de novo a essas promessas; apenas as torna atuais, repetindo-as de maneira solene e enfática em momento penoso do história do seu povo e anunciando para breve o cumprimento das mesmas. De resto, a Salvação, já oferecida por Deus em fases anteriores de tribulações de Israel, era penhor de que, também dessa vez, o Senhor não abandonaria seu povo.

As páginas mais tipicamente apocalípticas do Antigo Testamento são os capítulos 7 a 12 do livro de Daniel. Estas secções foram escritas no séc. II sob o domínio dos sírios ou Antíocos na Palestina; atribuem a Daniel, famoso varão do séc. VI, a descrição simbolista dos acontecimentos que se desenrolam desde o domínio persa (séc. VI a.C.) até o domínio sírio (séc. II a.C.); em estilo de sonhos que imperaram sobre Israel até Antíoco IV Epifânio (175-164); para os tempos deste, o autor apocalíptico anuncia a intervenção final de Deus e salvação a ser trazida pelo Messias. Não é fácil entender um apocalipse, visto que utiliza exuberante simbolismo e coloca o leitor diante de um cenário cósmico, que conjuga o céu e a terra.
Mais precisamente, podem-se assim caracterizar os elementos formais do gênero apocalíptico.

1) A pseudonímia do autor. Este é um contemporâneo dos seus primeiros leitores, mas fala-lhes como se fosse um personagem antigo e venerável. É o que se vê claramente, por exemplo, no livro de Daniel. No Apocalipse de São João é um anjo que revela.

2) O caráter esotérico (ou reservado) das revelações. Estas terão sido comunicadas outrora ao venerável personagem da antigüidade; deviam, porém. Ficar em segredo até os dias do autor do apocalipse. Veja-se, por exemplo, Dn 8, 26; 12, 9.

3) Frequentes intervenções de anjos. Estes aparecem, nos apocalipses, ora como ministros de Deus que colaboram com a Providência Divina na dispensação da salvação aos homens, ora como intérpretes das visões ou revelações que o autor do livro descreve. Cf. Ez 40,3; Zc 2,1s; 2,5-9; 5,1-4; 6, 1-8; Ap 7, 1-3; 8, 1-13.
4) Simbolismo rico e, por vezes, singular. Animais podem significar homens e povos; feras e aves representam geralmente as nações pagãs; os anjos bons são descritos como se fossem homens, e os maus como estrelas caídas. O recurso aos números é freqüente, explorando-se então o simbolismo dos mesmos (3, 7, 10, 12, 1000 como símbolos de bonança; 31/2 (como símbolo de penúria e tribulação). É a exuberância do simbolismo dos apocalipses que torna difícil a compreensão dos homens; o leitor ou intérprete deve procurar entender esse simbolismo a partir de passagens bíblicas e extra-bíblicas paralelas (na verdade, há símbolos que se repetem com a mesma significação: gafanhotos, águias, cedro, três anos e mui, mil anos...).

Os autores de apocalipses são assaz livres ao conceber seus símbolos, suas visões e personificações; propõem cenas estranhas sem se preocupar com a sua verossimilhança; cf., por exemplo, a Jerusalém nova em Ap 21, 1-27; Ez 47, 1-12.

5) Forte nota escatológica. Os apocalipses se voltam todos para os tempos finais da história e os descrevem com grandiosidade, apresentando a intervenção solene de Deus em meio a um cenário cósmico, o julgamento dos povos, o abalo da natureza, a punição dos maus e a exaltação dos bons (estando reservado para Israel nesse contexto um papel de relevo e recompensa).

Este traço diferencia bem da profecia o apocalipse. A profecia é sempre uma palavra dita em nome de Deus (propheemi = dizer em lugar de); todavia nem sempre visa ao futuro; refere-se muitas vezes a situações do presente, procurando sacudir os homens de sua indiferença religiosa ou da hipocrisia de vida, levando-os a conduta moral mais digna e correta; a profecia tem, sim, um caráter fortemente moralizante, válido para os contemporâneos, mas nem sempre voltado para o futuro ou a escatologia. - Ao contrário, nos apocalipses a índole moralizante desaparece quase por completo; o que preocupa o autor sagrado são os acontecimentos finais da história, que redundarão em derrota definitiva dos maus e prêmio para os bons; as visões, os sonhos e os símbolos fantasistas (que já os profetas cultivavam, mas com sobriedade) tornam-se o elemento dominante na forma literária dos apocalipses.

6) O gênero literário apocalíptico foi-se formando, com suas diversas características, através dos séculos ou paulatinamente. Já se encontram alguns de seus elementos nos escritos dos profetas, antes do séc. II a.C. Há mesmo passagens de profetas que têm estilo apocalíptico, como pode haver nos escritos apocalípticos trechos de índole profética. Assim no livro de Daniel são tidas como proféticas as passagens de Dn 2, 34. 44s; 7, 9-14; 12, 1-3.

Circunstâncias de origem do Apocalipse de São João

1. No fim do séc. I tornava-se cada vez mais penosa a situação dos cristãos disseminados no Império Romano.

Em verdade, o Senhor Jesus deixou este mundo, intimando aos discípulos aguardassem a sua volta gloriosa; não lhes quis indicar, porém, nem o dia nem a hora de sua vinda, pois esta deveria ser tida como a de um ladrão que aparece imprevistamente à meia-noite (cf. Mt 24, 43; 1Ts 5,2s); vigiassem, pois e orassem em santa expectativa. Todavia, apesar da sobriedade das palavras de Jesus, os discípulos esperavam que a sua vinda se desse em breve, enquanto ainda vivesse a geração dos Apóstolos mesmos. À medida, porém, que se passavam os decênios, essa esperança se dissipava; a não poucos parecia que Cristo havia esquecido a sua Igreja e que vão era crer no Evangelho.

A situação se tornara ainda mais angustiosa desde que Nero, em 64, desencadeara a primeira perseguição violenta contra os cristãos. "Ser discípulo de Cristo" equivalia, daquela ocasião em diante, a ser tido como "inimigo do gênero humano": manifestava-se cada vez mais a oposição entre mentalidade cristã e mentalidade pagã, de modo que, vivendo em plena sociedade pagã, os cristãos tinham não raro que se abster das festas de família, das celebrações cívicas, dos jogos públicos, até mesmo de certas profissões e ramos de negócio (pois através de todos esses meios se exprimia a mentalidade politeísta e supersticiosa reinante).

Em particular, na Ásia Menor o ambiente era carregado de maus presságios: lá ia tomando proporções cada vez mais avultadas o culto dos Imperadores, a ponto de se tornar a pedra de toque da fidelidade de um cidadão romano à pátria.
Desde 195 a.C. a cidade de Esmirna possuía um templo consagrado à deusa Roma; em 26 d.C. os esmirnenses ergueram outro santuário em honra de Tibério, Lívio e do Senado.

Em Pérgamo, desde 29 a.C., fora instituído o culto do Imperador.

A cidade de Éfeso, nos inícios do reinado de Augusto, construíra um altar dedicado a este soberano no recinto do "Artemision" ou templo de Diana.

Os habitantes da Ásia Menor era especialmente inclinados a tal forma de culto, pois se sentiam altamente beneficiados pelos governantes de Roma, que haviam posto termo às guerras civis na região, assegurando à população prosperidade na indústria, no comércio e na cultura em geral.

Ademais outro perigo para o Cristianismo se fazia notar na Ásia Menor em fins do séc. I. A gente dessa região era dotada de exuberante alma religiosa, de sorte que dava acolhida não somente às religiões tradicionais do Império e ao Cristianismo, mas também a formas de culto ditas "dos mistérios" (de Mitra, Cibele, Apolo...), recém-trazidas do Oriente. Tais mistérios fascinavam pela sua índole secreta e por sua promessa de divinização.

Esse estado de coisas permite tirar a seguinte conclusão: Ásia Menor uma religião que, como o Cristianismo, professasse rigorosamente um Deus único e transcendente manifestado por um só Salvador, Jesus, devia necessariamente defrontar-se em breve com formidável aliança de todas as forças do paganismo: sistemas religiosos, interesses políticos, planos econômicos deviam armar-se num combate unânime e cerrado contra o monoteísmo cristão; ser discípulo de Cristo, em tais circunstâncias, significaria sofrer o ódio e o boicote geral de parentes, amigos e concidadãos não cristãos, de tal modo que até mesmo na vida cotidiana do lar o cristão se sentiria sufocado por causa de sua fé.

A situação sugeria a não poucos discípulos de Jesus ou a apostasia em relação ao Divino Mestre ou uma espécie de pacto com as idéias do paganismo, de sorte a dar origem ao sincretismo religioso (caracterizado principalmente pelo dualismo ou o repúdio à matéria que a mística oriental muito propalava). Foi em tais circunstâncias sombrias que São João quis escrever o Apocalipse.

A finalidade do livro torna-se assim evidente.

O autor sagrado visava, acima de tudo, a alentar nos seus fiéis a coragem depauperada; o Apocalipse, em conseqüência, é essencialmente o livro da esperança cristã ou da confiança inabalável no Senhor Jesus e nas suas promessas de vitória.

Pergunta-se então: como terá São João procurado levantar o ânimo e corroborar a esperança dos leitores? Haverá, em nome de Deus, prometido dias melhores aqui na terra em recompensa na fidelidade a Cristo, de maneira que quem fosse hostilizado por causa do Senhor Jesus viria a ser estimado pelos concidadãos e acariciado por prósperas condições de vida temporal (economia feliz, saúde, sucesso nos empreendimentos...)?

A Interpretação do Apocalipse

Como se compreende, grande é o número de sistemas que tentam interpretar o Apocalipse. Todos concordam sobre o sentido geral do livro, que quer anunciar a vitória do Bem sobre o mal, do reino de Cristo sobre as maquinações dos pecadores. Divergem, porém, quando tentam indicar a época precisa em que o Apocalipse situa essa vitória. As diversas teorias se agrupam sob os títulos seguintes:
1) Sistema dito "escatológico" ou do fim dos tempos: São João estaria descrevendo os embates finais da história. Esta interpretação esteve em voga na antiguidade; foi posta de lado na Idade Média; do século XVI aos nossos dias é mais e mais prestigiada principalmente por parte de correntes que profetizam o fim do mundo para breve;

2) Sistema da história antiga (do século I aos séculos IV/V): o Apocalipse descreveria a luta do judaísmo e do paganismo contra os discípulos de Cristo, luta que terminou com a queda da Roma pagã (476) e o triunfo do Cristianismo;

3) Sistema da história universal: o Apocalipse apresentaria, sob a forma de símbolos, uma visão completa de toda a história do Cristianismo: descreveria sucessivamente os principais episódios de cada época e do fim do mundo.
Todas estas interpretações são, do algum modo, falhas, pois não levam em conta suficiente o estilo próprio do livro e querem deduzir do Apocalipse notícias que satisfaçam aos anseios de concreto ou mesmo à curiosidade do leitos. Por isto, deixando-as de lado, proporemos a teoria da recapitulação, que tem seu grande mestre no Pe. E. -B. Allo O.P., professor da Universidade de Friburgo (Suíça) e autor do livro: Saint Jean. L'Apocalypse. Paris, 1933 (4ª edição)¹. Examinaremos essa teoria.

A Recapitulação
Antes do mais, é necessário observar que nem todo o livro do Apocalipse está redigido em estilo apocalíptico. Compreende duas partes anunciadas em Ap 1,19:

1, 4-3,22: as coisas que são (revisão da vida das sete comunidades da Ásia Menor às quais São João escreve); o estilo é sapiencial e pastoral;

4, 1-22, 15: as coisas que devem acontecer depois. Esta é a parte apocalíptica propriamente dita, para a qual se volta a nossa atenção. Observemos a estrutura dessa parte:

4, 1-5, 14: a corte celeste, com sua liturgia. O Cordeiro "de pé", como que imolado" (5,6), recebe em suas mãos o livro da história da humanidade. Tudo o que acontece no mundo está sob o domínio desse Senhor, que é o Rei dos séculos. - Notemos assim que a parte apocalíptica do livro se abre com uma grandiosa cena de paz e segurança; qualquer quadro de desgraça posterior está subordinado a essa intuição inicial.

O corpo do livro, que se segue, compreende três septenários:

6, 1-8, 1: os sete selos

8, 2-11, 18: as sete trombetas

15, 5-16, 21: as sete taças.

Reflitamos sobre este núcleo central (de sentido decisivo) do Apocalipse.

Pergunta-se: uma estrutura tão artificiosamente construída poderá ainda ser o reflexo imediato da história tal como ela é vivida pelos homens? Não seria, antes, o fruto de um arranjo lógico ou do trabalho de um espírito que reflete sobre os acontecimentos e procura discernir alguns fios condutores por debaixo das diversas ocorrências da vida cotidiana? Sabemos que o estilo de São João é comparado ao vôo de uma águia que gira em torno do objeto contemplado até finalmente dar o boto ou dizer claramente o que quer. Levando em conta esta peculiaridade de estilo, podemos dizer que o autor sagrado não expõe os sucessivos acontecimentos concretos da história do Cristianismo, mas apresenta a realidade invisível que se vai afirmando constantemente por detrás dos episódios visíveis da história. Em outros termos: o Apocalipse apresenta (sob forma de símbolos) a luta entre Cristo e Satanás, luta que é o fundo e a coluna dorsal de toda a história. Cada septenário (o dos selos, o das trombetas e o das taças) é conseqüentemente uma peça literária completa em si mesma; o número 7, aliás, significa plenitude ou totalidade, segundo a mística dos antigos.



Apocalipse: Interpretação EB - Parte 2

Desenho

A seguir, de 17, 1 a 22, 15, ou seja, após os três septenários, ocorre a queda dos agentes do mal:

17, 1-19, 10: a queda da Babilônia da Roma pagã);

19, 11-21: a queda das duas bestas que regem Babilônia (o poder imperial pagão e a religião oficial do império);

20, 1-15: a queda do Dragão, supremo instigador do mal.

Em contra-parte, a secção final (21, 1-22, 15) mostra a Jerusalém celeste, Esposa do Cordeiro e antítese da Babilônia pervertida.

Os vv. 22, 16-21 constituem o epílogo do livro.

Aprofundemos um pouco mais o sentido do tríplice septenário central do Apocalipse.

O primeiro, o dos selos (6, 1-8, 1) nos dá a ver a paulatina abertura do livro que está nas mãos do Cordeiro. É o septenário mais sóbrio e nítido, que, pode-se dizer, resume o livro inteiro; examinemo-lo de perto:

- o primeiro selo corresponde a "um cavalo branco, cujo montador tinha um arco. Deram-lhe uma coroa e ele partiu vencedor e para vencer ainda" (5,2). O cavalo branco reaparece em 19, 11-16; seu montador é o Senhor dos Senhores e o Rei dos Reis (19, 16). - Conseqüentemente dizemos que o primeiro septenário se abre com uma figura alvissareira: a do Verbo de Deus ou Evangelho que, vencedor (porque já propagado no mundo), se dispõe a mais ainda se difundir. Sobre este pano de fundo vêm os três flagelos clássicos da história:

- o segundo selo corresponde ao cavalo vermelho, símbolo da guerra (6,3s);

- o terceiro selo é o do cavalo negro, símbolo da fome negra e da carestia que a guerra acarreta (6,5s);

o quarto selo é o do cavalo esverdeado, símbolo da peste e da morte decorrentes da guerra e da fome (6,7s).

Aí estão os três flagelos que afligem os homens em todos os tempos e que a Bíblia freqüentemente menciona; cf. Lv 26, 23-29; Dt 32, 24s; Ez 5, 17; 6, 11-12; 7, 15; 12, 16.

Depois disto, o quinto selo apresenta os mártires no céu pedindo a Deus justiça para a terra ou o fim da desordem que campeia no mundo. Reproduzem o clamor dos justos de todos os tempos, ansiosos de que termine a inversão dos valores na história da humanidade. Em resposta, é-lhes dito que tenham paciência e aguardem que se complete o número dos habitantes da Jerusalém celeste; cf. 6, 9-11.

O sexto selo já nos põe em presença do desfecho da história: chegou o Grande Dia do juízo final (6,17). Aparecem então os justos na bem-aventurança celeste: os judeus representados por 144.000 assinalados, e os provenientes do paganismo, a constituir "uma multidão inumerável de todas as nações, tribos, povos e línguas" (7,9); celebram a liturgia celeste. - Aqui se encerra propriamente o primeiro septenário; compreende em suas grandes linhas os aspectos aflitivos da história da humanidade e o anseio dos justos para que a ordem se restabeleça; a consumação da história é, para os fiéis, vitória e felicidade. A consolação que São João quer transmitir aos seus leitores, consiste precisamente em mostrar que as calamidades sob as quais os homens gemem, estão envolvidas num plano sábio de Deus, onde todos os males estão dimensionados para que sirvam à salvação das criaturas e à glória do Criador. Eis aí a síntese do Apocalipse apresentada com clareza no primeiro septenário.

E o sétimo selo (8,1)? - Corresponde a um silêncio de meia-hora. Sim, o livro se abriu por completo. O vidente espera execução dos desígnios de Deus contidos no livro aberto. Este silêncio de meia-hora é o "gancho" do qual pende o segundo septenário.

O segundo e o terceiro septenários (8, 2-11, 18 e 15, 5-16,21) retomam o conteúdo do primeiro com algumas variantes. Observemos, para começar, que terminam cada qual com a consumação da história (sétima trombeta em 11, 14-18 e sétima taça em 16, 17-21). O segundo septenário tem em vista principalmente os flagelos que afligem o mundo profano: a terra, a vegetação, as águas, os astros ... Ao contrário, o terceiro septenário tem em mira as sortes da Igreja perseguida pelo Dragão (Satanás) e seus dois agentes (o poder imperial pagão, que manipula a religião oficial do Estado pagão).

Observemos dentro do segundo septenário o "gancho" do qual pende o terceiro septenário: em Ap 10, 8-11 e entregue a João um livrinho, doce na boca e amargo no estômago. Como entender isto ? - O segundo septenário, apresenta a execução do plano de Deus contido no livro cujos selos se abriram. Portanto, se deve haver outra série de revelações, deve haver também outro livro que as traga; é precisamente este que João recebe em 10, 8-11 (amargo no estômago, porque portador de notícias pesadas para os cristãos fiéis).

Merece atenção especial o intervalo ocorrente entre o segundo e o terceiro septenários, ou seja, a secção de 11, 19 a 15,4. Ele prepara a série das taças, apresentando os grandes protagonistas da história da Igreja: a Mulher e o Dragão no capítulo 12; as duas Bestas, manipuladas pelo Dragão, sendo que a primeira sobe do mar (quem olha da ilha de Patmos para o grande mar, se volta para Roma) e representa o poder imperial perseguidor, ao passo que a Segunda Besta sobe da terra (quem de Patmos olha para o continente próximo, volta-se para a Ásia Menor, onde campeia o culto religioso do Imperador); ver respectivamente Ap 13,1 e 11. A sede capital destes dois agentes é Babilônia (= a Roma pagã). O cap. 12, ao apresentar a Mulher e o Dragão, é também uma síntese da mensagem da Apocalipse e da história da Igreja, que será comentada na Quarta parte deste estudo. - Como dito, os agentes do mal estão fadados a perecer, como se lê em 17, 1-20, 15, dando lugar à Jerusalém celeste e à bem-aventurança dos justos.
Por conseguinte as calamidades que o Apocalipse apresenta a se desencadear sobre o mundo, não hão de ser interpretadas ao pé da letra; antes, depreender-se-á o seu sentido à luz das cenas de paz e triunfo que o autor sagrado intercala entre as narrativas de flagelos (enquanto os justos padecem na terra, há plena segurança no céu, conforme o Apocalipse). Justapondo aflições (na terra) e alegria (no céu), São João queria precisamente dizer aos seus leitores que as tribulações desta vida estão em relação estrita com a Sabedoria de Deus; foram cuidadosamente previstas pelo Senhor, que as quis incluir dentro de um plano muito harmonioso, plano ao qual nada escapa. Em conseqüência, ao padecer as aflições da vida cotidiana, os cristãos se deviam lembrar de que tais adversidades não esgotam toda a realidade, mas são apenas as facetas externas e visíveis de uma realidade que tem seu aspecto celeste e grandioso; as calamidades, portanto, sob as quais os cristãos do primeiro século se sentiam prestes a desfalecer, não os deveriam impressionar; constituíam como que o lado avesso e inferior de um tapete que, visto no seu aspecto autêntico e superior, é um verdadeiro tapete oriental, cheio de ricas cores e belos desenhos.

Eis a forma de consolo que o autor sagrado queria incutir aos seus leitores (não só do séc. I, mas de todos os tempos da história): os acontecimentos que nos acometem aqui na terra são algo de ambíguo ou algo que tem duas faces: uma exterior, visível, a qual é muitas vezes aflitiva e tende a nos abater; outra, porém, interior, a qual é grandiosa e bela, pois faz parte da luta vitoriosa do Bem sobre o mal; é mesmo a prolongação da obra do Cordeiro que foi imolado, mas atualmente reina sobre o mundo com as suas chagas glorificadas (cf. c. 5). Por isto, enquanto os cristãos a terra gemem (Ai, ai, ai!), os bem-aventurados na glória cantam (Aleluia, aleluia, aleluia!)

No céu os justos não se acabrunham com o que acontece de calamitoso na terra; antes, continuam a cantar jubilosamente a Deus porque percebem o sentido verdadeiro das nossas tribulações. Pois bem, quer dizer São João, essa mesma paz e tranqüilidade deve tornar-se a partilha também dos cristãos na terra, pois, embora vivam no tempo e no mundo presentes, já possuem em suas almas a eternidade e o céu sob forma de gérmen (o gérmen da graça santificante, que é a semente da glória celeste).

Assim o Apocalipse oferece uma imagem do que é a vida do cristão ou, mais amplamente, a vida da Igreja: é uma realidade simultaneamente da terra e do céu, do tempo e da eternidade. Na medida em que é da terra e do tempo, apresenta-se aflitiva; este aspecto, porém, está longe de ser essencial; no seu âmago, a vida do cristão é celeste e, como tal, é tranqüila, à semelhança da vida dos justos que no céu possuem em plenitude aquilo mesmo que os cristãos possuem na terra em gérmen.

DOIS TEXTOS EM PARTICULAR

Examinaremos mais precisamente Ap 12, 1-17 e 20, 1-10.

Ap 12, 1-17

Este capítulo sintetiza toda a história da Igreja sob a forma de luta entre a Mulher e o Dragão, figuras paralelas às da Mulher e da serpente em Gn 3, 15.

Em poucas palavras, este trecho apresenta uma Mulher gloriosa e dolorida ao mesmo tempo. Está para dar à luz um filho que um monstruoso Dragão espreita para abocanhá-lo. A Mulher gera seu Filho, que tem os traços do Messias; Ele escapa ao Dragão e é arrebatado aos céus. Dá-se então uma batalha entre Miguel com seus anjos e o Dragão; este acaba sendo projetado do céu sobre a terra, onde procura abater a Mulher-Mãe, perseguindo-a de diversos modos. Todavia o próprio Deus se encarrega de defender a Mulher no deserto durante os três anos e meio ou os 42 meses ou os 1260 dias de sua existência. Vendo que nada pode contra essa figura grandiosa, a Serpente antiga atira-se contra os demais filhos da Mulher, tentando perdê-los.

Que significa este capítulo?

Está claro que o Dragão representa Satanás, aquele que é "mentiroso e homicida desde o início" (cf. Jo 8, 44).
Quanto à Mulher, não pode ser identificada com algum personagem individual, mas é a Mulher que perpassa toda a história da salvação. Com efeito; já à primeira Eva (= Mãe dos vivos ou da vida) Deus prometeu um nobre papel na obra da Redenção. A primeira Eva (= Mãe da Vida) se prolongou na Filha de Sion (o povo de Israel, do qual nasceu o Messias); a filha de Sion culminou na Segunda Eva, Maria SS., que teve a graça de ser pessoalmente a Mãe de Redentor; por isto em Ap 12, 1s a Mulher é gloriosa como Maria, mas dolorida como o povo de Israel. A maternidade de Maria continua na da Santa Mãe Igreja; esta tem a garantia da incolumidade (cf. Mt 16, 18) que Cristo lhe prometeu, mas os filhos que ela gera nas águas do Batismo estão sujeitas a ser atingidos pela sanha do Dragão, que age neste mundo como um Adversário já vencido, mas cioso de arrebanhar os incautos que lhe dêem ouvidos (S. Agostinho diz que o demônio é um cão acorrentado; pode ladrar, fazendo muito barulho, mas só morde a quem se lhe chegue perto). Por último, a Mulher-Mãe, que exerce sua maternidade por toda a história da salvação, se consumará na Jerusalém celeste, a Esposa do Cordeiro (Ap 21s).

A batalha entre Miguel e o Dragão não corresponde à queda original dos anjos, mas significa plasticamente a derrota de Satanás, vencido quando Cristo venceu a morte por sua Ressurreição e Ascensão. Deus lhe permite tentar os homens nestes séculos da história da Igreja, com um fim providencial, ou seja, a fim de provar e consolidar a fidelidade dos homens. Satanás só age por permissão de Deus.

A duração de 1260 dias ou 31/2 anos que a Mulher passa no deserto, não designa cronologia, mas tem valor simbólico.

Com efeito, 31/2 anos, 42 meses e 1260 dias são termos equivalentes entre si; correspondem à metade de 7 anos. Ora, sendo 7 o símbolo da totalidade, da perfeição e, por conseguinte, da bonança, a metade de 7 vem a ser o símbolo do inacabamento e da dor. Portanto, 31/2 anos (e as expressões equivalentes em meses e dias) no Apocalipse designam toda a história da Igreja na medida em que é algo de ainda não rematado ou na medida em que é luta penosa entre a primeira e a Segunda vinda de Cristo, no deserto deste mundo.

Ap 20,1-10

É este o trecho que fala de aparente reino milenar de Cristo sobre a terra, estando Satanás acorrentado. O milênio seria inaugurado pela ressurreição primeira, reservada aos justos apenas, aos quais seria dado viver em paz e bonança com Cristo. Terminado o milênio, Satanás seria solto para realizar a sua invectiva final, que terminaria com a sua perda definitiva. Dar-se-iam então a ressurreição Segunda, para os demais homens, e o juízo final.

A teoria milenarista, entendida ao pé da letra, foi professada por antigos escritores da Igreja (S. Justino + 165, S. Ireneu + 202, Tertuliano + após 220, Lactâncio + após 317 ...) Todavia S. Agostinho (+430) propôs novo modo de entender o texto - o que excluiu definitivamente a interpretação literal; o S. Doutor baseou-se em Jo 5,25-29, onde se lê

"Em verdade, em verdade vos digo, aquele que ouve a minha palavra... passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo, que vem a hora, e já veio, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem viverão... Não vos admireis disto, pois vem a hora em que ouvirão sua voz todos os que estão nos sepulcros. Os que praticaram o bem sairão para a ressurreição da vida; os que, porém, praticaram o mal, sairão para a ressurreição do juízo".
Nesse trecho, o Senhor distingue duas ressurreições: uma, que se dá "agora" ("e já veio"), no tempo presente, quando ressoa a pregação da Boa Nova; é espiritual, devida ao batismo; eqüivale à passagem do pecado original para a vida da graça santificante. A outra é simplesmente futura e se dará no fim dos tempos, quando os corpos forem beneficiados pela vida nova agora latente nas almas.

Por conseguinte no Apocalipse a ressurreição primeira é a passagem da morte para a vida que se dá no Batismo de cada cristão, quando este começa a viver a vida sobrenatural ou a vida do céu em meio às lutas da terra. A ressurreição Segunda é, sim, a ressurreição dos corpos, que se dará quando Cristo vier em seu glória para julgar todos os homens e pôr termo definitivo à história.

Mil anos, em Ap 20, 1-10, designam a história da Igreja na medida em que é luta vitoriosa ("mil" é um símbolo de plenitude, de perfeição; "mil felicidades", na linguagem popular, são "todas as felicidades"). Pela Redenção na Cruz, Cristo venceu o príncipe deste mundo (cf. Jo 12, 31), tornando-o semelhante a um cão acorrentado, que muito pode ladrar, mas que só pode morder a quem voluntariamente se lhe chegue perto (S. Agostinho). É justamente esta a situação do Maligno na época que vai da primeira à Segunda vinda de Cristo ou no decurso da história do Cristianismo; por isto os três anos e meio que simbolizam o aspecto doloroso desses séculos (já estamos no vigésimo século), são equivalentes a mil anos, caso queiramos deter nossa atenção sobre o aspecto feliz, transcendente ou celeste da vida do cristão que peregrina sobre a terra; a graça santificante é a semente da glória do céu.

Assim se vê quanto seria contrário à mentalidade do autor sagrado tomar ao pé da letra os mil anos do c. 20 e admitir um reino milenário de Cristo visível na terra após o currículo da história atual.

CONCLUSÃO

O sistema da recapitulação assim proposto merece francamente ser preferido aos demais, pois é o que mais leva em conta a mentalidade e o estilo do auto sagrado São João; este, também no seu Evangelho, recorre às repetições ou ao estilo de recapitulação em espiral.
Contudo ninguém negará as alusões do Apocalipse a personagens da história antiga (Nero, a invasão dos bárbaros, Roma, Babilônia...). Mediante essas referências, São João não tinha em vista deter a atenção do seu leitor sobre episódios da antigüidade, mas apenas mencionar tipos característicos de mentalidades humanas ou de situações de vida que acompanham toda a história da Igreja: assim Nero vem a ser o tipo dos soberanos políticos que persigam a Igreja em qualquer época (há muitas reproduções de Nero através da história). Por isto também o número 666 da Besta do Apocalipse, adversária dos cristãos, eqüivale (segundo a interpretação mais provável) à expressão Kaisar Neron (Imperador Nero).¹
Roma e Babilônia, por sua vez, designam de maneira típica o poderio deste mundo que, com seus mil atrativos de esplendor e prazer, procura seduzir os discípulos de Cristo para o pecado - A luta a que São João assistiu, entre Roma pagã e a Igreja, é evocada no Apocalipse não por causa dessa luta mesma, mas dentro de uma perspectiva mais ampla, isto é, a fim de simbolizar e predizer o combate perene que se vai travando entre o poder diabólico e Cristo através dos séculos, até terminar com a plena vitória do Senhor Jesus.
Estas considerações concorrem para evidenciar quanto é vã a tentativa de descobrir a predição de fenômenos estranhos da hora presente (bombas atômicas, explosões, enchentes e secas, discos voadores) nos quadros do Apocalipse. Estes são quadros típicos e perenes, quadros que se reproduzem por todo o decorrer da história, variando apenas de facetas.

A sua mensagem abrange todas as situações análogas: querem, sim, dizer que as desgraças da vida presente, por mais aterradoras que pareçam estão sujeitas ao sábio plano da Providência Divina, a qual tudo faz concorrer para o bem daqueles que O amam (cf. Rm 8, 28).

¹ Segundo nos conta, até hoje não foi publicado algum comentário do Apocalipse tão denso e documentado quanto o do Pe. Allo O.P.

¹ A indicação da identidade da primeira Besta sob a forma do número 666, em Ap 13, 18, pertence ao artifício literário chamado gematria: às letras atribuía-se valor numérico, de modo que cada nome tinha um número equivalente. A interpretação de 666 há de ser procurada no contexto lingüístico, geográfico e histórico de São João e de seus imediatos leitores, não em época posterior ou em outra língua que não o hebraico e o grego. Levando em consideração este princípio, pode-se dizer que 666 eqüivale a Kaisar Neron escrito em caracteres hebraicos:

N V R N R S Q

50 6 200 50 200 60 100 = 666

Esta interpretação é confirmada pelo fato de que alguns manuscritos antigos têm 616 e não 666. Isto se explica pela queda do N no final (ler da direita para a esquerda), compreensível, pois se podia dizer Nero em vez de Neron.