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sexta-feira, 6 de abril de 2012

Sobre a Ressurreição dos Mortos parte 1

Esquema e conteúdo da obra

Por Roque Frangiotti

O tratado se divide em duas grandes partes: os caps. 1-11 formam a primeira parte e respondem às objeções tradicionais a respeito da ressurreição dos corpos como impossível de se realizar e indigna de Deus; os caps. 12-25 formam a segunda parte e estabelecem a conveniência e a necessidade da ressurreição. O argumento fundamental, entre outros, é que sendo o homem composto de corpo e alma, as duas partes devem ser recompensadas ou punidas juntas. Quatro argumentos vêm reforçar esta fundamentação: nos caps. 12-13, o argumento é o destino do homem criado para viver eternamente. Ora, se não houver ressurreição, não haverá vida eterna. Nos caps. 14-17, usa-se como argumento a natureza humana que compreende dois elementos unidos, a alma e o corpo. Nos caps. 18-23, trata-se do julgamento que deve ser aplicado tanto ao corpo quanto à alma, porque tanto um como o outro deve ser premiado ou castigado. Seria injusto, por exemplo, não premiar o corpo pelas obras boas que o homem realizou com sua colaboração. Finalmente, nos caps. 24-25, Atenágoras emprega o argumento do fim último que não é atingido nesta existência. O homem foi destinado à felicidade eterna, mas esta não é alcançada nesta vida. Logo, tem que haver ressurreição para que esta felicidade possa acontecer. Como se vê, Atenágoras tenta demonstrar a possibilidade e a conveniência da ressurreição fundamentalmente ao nível filosófico sem recorrer às Escrituras e nem mesmo alude à ressurreição de Cristo.

Deve-se observar ainda que a antropologia de Atenágoras é dependente do platonismo. O homem é composto de corpo mortal e alma imortal, embora criada. Na ressurreição, o corpo se conjuga novamente com a alma, que no período que vai entre a morte e a ressurreição, estivera num estado de torpor. A ressurreição reconstrói, portanto, aquela unidade que constitui o verdadeiro homem.

A Obra.

Por Atenágoras de Atenas (Bispo. Séc II).

I PARTE: A POSSIBILIDADE DA RESSURREIÇÃO

Dois tipos de raciocínio

1. Em todo dogma ou doutrina que se atenha à verdade nesses assuntos nasce, como rebento, alguma mentira. E nasce não porque, de princípio, saia algo inerente por natureza ou como causa essencial de cada coisa, mas porque é procurado com afinco que honram o germe adúltero que corrompe a verdade. Pode-se comprovar isso primeiramente que há muito tempo especularam sobre esses assuntos e na divergência com seus predecessores ou mesmo com seus contemporâneos, e igualmente atra­vés da própria confusão em que se encontram os assuntos discutidos. Com efeito, é certo que essa laia de pessoas não deixou nenhuma verdade sem calúnia: nem a essência de Deus, nem seu conhecimento e sua operação, nem o seguimento encadeado dessas coisas que nos aponta a doutrina da piedade. Assim, existem alguns que, comple­tamente e de uma vez para sempre, renunciam a encon­trar a verdade sobre esses assuntos; outros a distorcem em vista de suas próprias opiniões; outros, por fim, fazem profissão de dúvida até sobre o evidente. Na minha opinião, aqueles que se preocupam com isso necessitam de duplos raciocínios: uns para defender a verdade, outros a respeito da verdade. Os raciocínios para defender a verda­de se dirigem aos que não crêem ou duvidam; os raciocínios a respeito da verdade para os que têm sentimentos nobres e recebem com benevolência a verdade. Portanto, é preciso que aqueles que desejam examinar estas questões considerem o que lhes seja útil em cada caso e, de acordo com o caso, meçam seus raciocínios e ajustem convenientemente à sua ordem, e não descuidem do conveniente e do lugar que corresponde a cada coisa, acreditando que se deva conservar sempre o mesmo princípio. Com efeito, se se olha para a força demonstrativa e para a ordem natural, os raciocínios a respeito da verdade têm a primazia sobre os raciocínios em defesa da verdade; ao contrário, se olhamos, porém, a utilidade, os raciocínios em defesa da verdade são anteriores aos raciocínios a respeito da verdade. Assim é que o lavrador não pode convenientemente lançar as sementes na terra, se antes não arrancar todo o mato e o que pode prejudicar a boa semente; o médico também não pode aplicar medicamentos de saúde ao enfermo, se não limpa antes o mal interno ou não detém o mal que procura infiltrar-se; assim quem procura ensinar a verdade não poderá, por mais que fale dela, persuadir a ninguém, enquanto uma falsa opinião esteja agarrada à mente dos ouvintes e se oponha aos raciocínios. Nós também, visando justamente à utilidade, por vezes antepomos os raciocínios em defesa da verdade aos raciocínios a respeito da verdade. E para quem considera o que é conveniente, não lhe parecerá inútil que procedamos agora do mesmo modo, neste tratado sobre a ressurreição. De fato, também neste assunto, encontramos alguns que não crêem absolutamente, outros que duvidam e, entre os que aceitam nossos primeiros princípios, existem os que são tão perplexos como os que duvidam abertamente. O mais absurdo é que eles não têm o menor pretexto para fundamentar sua incredulidade na realidade, nem podem encontrar uma única causa racional para não crerem ou duvidarem.

O conhecimento que Deus tem das coisas é garantia da ressurreição

2. Passemos à consideração. Toda incredulidade, se não é gerada temerariamente ou por alguma opinião irreflexiva, mas por forte causa e com verdadeira segurança, então detém a razão conveniente, pois a própria coisa para a qual se nega a fé não parece oferecer nenhuma garantia de verdade. De fato, não crer naquilo que não é inacreditável é próprio de homens que não têm dela julgamento sadio sobre a verdade. Portanto, os que não crêem na ressurreição ou duvidam dela, não devem dar sua opinião sobre ela a partir do que lhes pareça irrefletidamente, nem por aquilo que poderia ser grato às pessoas intemperantes; devem dizer que a origem do homem não depende de nenhuma causa (e isso é fácil de refutar) ou, se atribuem a Deus a causa de todos os seres, devem olhar este dogma como princípio e por ele devem demonstrar que a ressurreição não tem nenhuma garantia de verdade. Conseguirão isso se demonstrarem que Deus não pode ou não quer unir e juntar de novo os corpos mortos e até completamente desfeitos, para constituir os mesmos homens. E se não podem demonstrá-lo, parem com essa incredulidade atéia e não blasfemem contra o que não é lícito blasfemar. Que não dizem a verdade ao falar que Deus não pode ou não quer, ficará claro pelo que vamos dizer.

Sabe-se realmente que algo é impossível para alguém, quando este não sabe o que fazer ou porque não tem força suficiente para fazer bem o que sabe. Com efeito, aquele que não conhece o que se tem que fazer, não pode de jeito nenhum tentar, sequer realizar o que desconhece; aquele que conhece bem o que se tem que fazer, quais os meios e de que modo, mas não tem nenhuma força para isso ou não a tem suficientemente, esse, se é sensato e sabe medir as próprias forças, em princípio não começará a obra; se a começa de modo desconsiderado, não poderá levar o cabo o seu propósito. Pois bem! Não é possível que Deus desconheça, em cada parte e membro, a natureza dos corpos que ressuscitarão, nem que ignore o paradeiro de cada parte desfeita, nem qual parte de elemento recebeu o desfeito e dissolvido em seus afins, por mais difícil que pareça aos homens discernir aquilo que identi­ficou novamente de modo natural com o todo. De fato, quem, antes da própria constituição de cada um, não desconhecia a natureza dos elementos que deveriam exis­tir e dos que deveriam formar os corpos dos homens, nem as partes daqueles que lhe pareceu melhor tomar para a constituição do corpo, é evidente que, depois de completa­mente dissolvido, também não desconhecerá onde foi parar cada uma das partes que tomou para completar o todo. Segundo a ordem dominante das coisas entre nós e o julgamento de cada caso, certamente é superior conhe­cer antecipadamente o que não é; no entanto, para a dignidade e sabedoria de Deus, ambas as coisas são naturais e igualmente fáceis: conhecer antecipadamente o que não é e reconhecer o que se desfez.

Quem criou pode recriar

3. Que o poder de Deus seja suficiente para ressuscitar os corpos, o próprio fato de sua criação o prova. Se Deus fez os corpos dos homens, que não existiam, conforme a primeira constituição e princípios deles, com a mesma facilidade ressuscitará os que, seja como for, se desfize­ram, pois isso é igualmente possível para ele. Este racio­cínio em nada falha pelo fato de que alguns suponham que os primeiros princípios derivam da matéria, ou que os corpos dos homens têm como princípios os elementos ou os espermas. De fato, o mesmo poder usado para dar forma ao que eles consideram matéria informe, adornar com diferentes espécies a que não tem espécie nem adorno, reunir em um só composto as partes dos elementos, dividir na variedade de membros o sêmen que é um e simples, articular o inarticulado, e dar vida ao não viven­te, o mesmo é usado para reunir o dissolvido, levantar o que jaz por terra, vivificar o morto e transformar em incorrupto o corrompido. Corresponde ao mesmo e é obra do mesmo poder e sabedoria distinguir e reunir em suas próprias partes e membros aquele que, despedaçado, foi parar numa multidão de animais de toda espécie, que costumam atacar tais corpos e saciar-se deles, tenham ido pararem um só desses animais ou em muitos, e destes em outros e, dissolvido juntamente com eles, tenha voltado, conforme a natural dissolução, aos primeiros princípios. Parece ser isso o que mais perturba alguns, entre aqueles cuja sabedoria é admirável; não sei porque consideram tão grandes as dificuldades correntes entre o vulgo.

Dificuldades para admitir a ressurreição

4. Com efeito, o vulgo costuma objetar que muitos corpos, mortos miseravelmente em naufrágios e rios, serviram de alimento aos peixes, e muitos que morreram nas guerras, ou em outra causa mais áspera, ou em qualquere acidente das coisas, não receberam as honras da sepultura e ficaram expostos como pasto de numerosas feras. Desse modo, consumidos os corpos e espalhadas suas partes e membros, de que se compunham, entre muitos animais e assimilados, através do alimento, com os corpos daqueles que os comeram, eles dizem primeira­mente que a separação é impossível. A essa dificuldade acrescentam outra ainda maior: se os corpos de animais que se alimentaram de carne humana são, por sua vez, aptos para alimento de homens, passando pelo ventre destes e assimilados aos corpos de quem os comeram, resultará necessariamente que as partes dos homens que serviram de alimento aos animais passarão para os corpos de outros homens, pois os animais que se alimentaram deles os transportam, por sua vez, para aqueles homens que se alimentam deles. A tudo isso, acrescentam as tragédias daqueles que comeram seus próprios filhos em momentos de fome ou em arroubos de loucura, ou dos filhos que, por armadilha dos inimigos, foram alimento de seus próprios pais; formam assim uma cadeia de calami­dades acontecidas entre os gregos e os bárbaros: a famosa mesa de Medéia, os trágicos convites de Tiestes e outras semelhantes. A partir de tudo isso, estabelecem, confor­me pensam, que a ressurreição é impossível, pois os mesmos membros não podem ressuscitar em diferentes corpos; ou não podem ressuscitar os corpos dos primeiros, admitindo que as partes que o compunham passaram para outro; ou, se estas são devolvidas para os primeiros, os outros ficarão defeituosos.

Argumentações para eliminar as objeções

5. Parece-me, porém, que aqueles que assim falam, em primeiro lugar, desconhecem o poder e a sabedoria daquele que criou e governa todo este universo. Ele adapta o natural e conveniente alimento para cada natureza e espécie de animal, não permite que qualquer natureza seja unida a qualquer corpo e assimilada por este; e não lhe seria difícil nem mesmo a separação do unido. Ele consente, porém, que cada coisa criada faça e suporte o que condiz com sua natureza e proíbe o que não condiz; e ele consente ou se opõe a tudo o que quer e para a finalidade que quer. Além disso, parece-me que não levaram em consideração a própria força e natureza de cada um dos que se alimentam ou são alimentados. Caso contrário, ter-se-iam dado conta de que nem tudo que se ingere, cedendo à necessidade exterior, converte-se, sem mais nem menos, em alimento natural para o animal, mas que existem coisas que, apenas tendo chegado às partes dobradas do ventre, naturalmente se corrompem e que, por vômito, secreção ou por outro modo, são expelidas, de modo que por breve tempo toleram a primeira e natural cocção e muito menos a assimilação com o corpo que se quer alimentar. Além disso, tudo o que foi cozido e recebeu a primeira transformação não se incorpora absolutamente às partes alimentadas, porque parte perde sua força nutritiva no próprio ventre, parte na segunda transformação, são segregados na cocção que se realiza no fígado e executam outra função alheia à virtude nutritiva. Mesmo a transformação que se realiza no fígado não passa a ser inteiramente alimento dos homens, mas é segregada para as naturais superfluidades. Por fim, o que sobra se transforma por vezes em outra coisa nas mesmas partes e membros alimentados, conforme o predomínio do que abunda ou sobra e que costuma, de algum modo, corromper ou assimilar em si o que se lhe aproxima.

6. Portanto, como é tão grande a variedade natural em todos os animais e o próprio alimento natural muda para cada espécie animal e para cada corpo alimentado, e o alimento de cada animal, tendo que sofrer tríplice purificação e segregação, é totalmente necessário que ele corrompa naturalmente, elimine ou transforme em outra coisa tudo o que é alheio à nutrição do animal, por não poder ser assimilado, e que a força do corpo alimentício se ajeite e esteja conforme à natureza e força do corpo alimentado pelas segregações naturais e, purificado com os meios de purificação da própria natureza, se transforme em autêntico aumento da substância. Falando conforme a verdade das coisas, somente este se deveria chamar alimento, pois rejeita tudo o que é alheio e daninho à constituição do corpo alimentado e aquele grande peso que provém de ventre cheio e da satisfação do apetite. Ninguém duvidará que este é o alimento que se une ao corpo alimentado, implicando-se e incorporando-se às suas partes e membros; mas o que não é assim e é contrário à natureza, corrompe-se logo ao se encontrar com uma força maior; todavia, se é ele que predomina, corrompe com facilidade o organismo e se transforma em maus humores e qualidades venenosas, como o que não traz nada próprio ou favorável ao corpo alimentado. A prova maior disso reside em que para muitos animais seguem-se dores, perigo ou morte se, impelidos por veemente apetite, ingerem, misturado à comida, algo venenoso e contrário à natureza. Isso pode corromper o animal alimentado, pois o que se alimenta, se alimenta somente com o apropriado e conforme à sua natureza, e se corrompe com o contrário. Ora, se o alimento conforme à natureza se diversifica pela diferença dos animais também diferentes por natureza, e ainda assim nem tudo o que o animal ingere, nem qualquer parte dele, recebe a assimilação com o corpo alimentado, mas somente o purificado por todas as cocções e de fato transformado para a união segundo a qualidade do corpo, e que se adapta finalmente às partes alimentadas, é evidente que nada que seja contra a natureza pode unir-se a corpos para os quais não é alimento natural e conveniente; ao contrário, ou é eliminado no próprio ventre, antes de gerar algum outro humor, cru ou corrompido, ou, se se mantém por muito tempo, produz sofrimento e doença de difícil cura, que corrompe o alimento natural e até a própria carne que necessita de alimento. Mesmo quando é expelido, seja por medicamentos, seja por comidas melhores, ou vencido pelas forças naturais, não é eliminado sem grande prejuízo, pois não leva nada de pacífico aos elementos naturais, porque não se assimila naturalmente com eles.

7. Mesmo concedendo que um alimento em tais condições (chamemo-lo assim por costume) entre no organismo, embora sendo contra a natureza, e se transforme num dos elementos úmidos ou secos, frios ou quentes, essa concessão absolutamente de nada adiantará para nossos opositores, porque os corpos ressuscitados constarão novamente de suas próprias partes e nada do que foi dito é parte, nem tem função ou ordem de parte. Ainda mais: essas coisas nem sempre permanecem com as partes do corpo alimentado, nem ressuscitarão juntamente com os corpos ressuscitados, pois daí para frente de nada lhes servirão o sangue, a pituíta, a bílis, a respiração, porque não terão mais necessidade daquilo que os corpos alimentados necessitavam antes, uma vez que, junto com a necessidade e a corrupção, ser-lhes-á tirado o uso das coisas de que se alimentavam.

Por fim, suponhamos que a transformação desse alimento chegue até a fazer-se carne. Nem mesmo assim haverá necessidade de que essa carne recém-formada de tal alimento e que aderiu ao corpo de outro homem tenha novamente de servir como parte para a composição desse homem, pois nem sempre a carne que assimila conserva a que tomou, nem é constante a que com ela se uniu, nem permanece com aquela com a qual se agregou. Com efeito, são muitas as mudanças que pode sofrer de um ou de outro modo; ora arrastada e levada por trabalhos e preocupações, ora consumida pelas tristezas, fadigas e enfermidades, ou porque, produzindo-se destemperanças por causa do calor ou frio, as partes que receberam o alimento, por permanecerem no que são, não se transformam com a carne e a gordura. Com tantos acidentes que sobrevêm a toda carne, é mais cabível entender que isso passa àquela que se nutre de alimentos que lhe são impróprios, ora ganhando em peso e engordando com o que come, ora rejeitando-o de alguma maneira e emagrecendo, seja por causa de uma só das causas mencionadas, seja por muitas. Permanece nas partes somente aquilo que tem por função unir, proteger e aquecer, isto é, o alimento que foi selecionado pela natureza e que se assimila às partes cuja vida e cujos trabalhos na vida se comportem conforme a própria natureza. No entanto, (nem julgando como se deve o que foi examinado por nós, nem concedendo ao que os opositores nos objetam pode-se demonstrar a verdade do que eles dizem) não é possível que os corpos dos homens se assimilem aos de sua própria natureza, seja por ignorância, seja por artifício de outro, quando alguém come sem dar-se conta de tal corpo, seja quando, conscientemente, por necessidade ou por loucura, se manche com corpo de sua própria espécie, caso nos tenhamos esquecido de que existem certas feras com forma humana ou natureza mista de homem e fera, tal como alguns poetas mais audazes costumam fantasiar.

8. Para que falar dos corpos que não são destinados a ser alimento de nenhum animal e aos quais resta apenas a sepultura na terra, para honra da natureza, se o Criador não destinou nenhum animal como alimento dos de sua própria espécie, embora possam transformar-se em alimento natural para outros de espécie diferente?

Ora, se se pode demonstrar que as carnes humanas estão destinadas a servir de alimento para os homens, nada se oporá a que a antropofagia esteja de acordo com a natureza, como qualquer outra das coisas que a natureza permite, e os que se atrevem a dizer tais atrocidades poderão saciar-se com os corpos de seus mais queridos, como mais apropriados para si, ou dar seus banquetes com estes para seus melhores amigos. Todavia, se apenas falar isso é uma impiedade e os homens comerem os homens é coisa horrorosa e abominável, e não há comida ou ação contra a lei e a natureza mais sacrílega do que esta; e como o que é contra a natureza não pode se transformarem alimento para as partes que dele necessitam, e se não se transforma em alimento também não pode se assimilar ao que naturalmente não pode alimentar, segue-se de tudo isso que os corpos dos homens jamais podem assimilar corpos de sua mesma espécie, por ser alimento contra a natureza, embora passasse muitas vezes por seu ventre para uma amarga desgraça; ao contrário, separados da força nutritiva e espalhados entre aqueles elementos, dos quais receberam sua primeira composição, identificam-se com estes pelo tempo que tocar a cada um. Depois, daí separados novamente por sabedoria e poder de quem compôs toda a natureza do animal, com suas próprias potências, cada um se une naturalmente com cada um, embora tivesse sido queimado pelo fogo, ou apodrecido na água, ou devorado pelas feras ou por quaisquer animais, ou ainda cortado do conjunto do corpo, tenha-se dissolvido de suas outras partes. Membros e membros, unidos novamente, ocuparão o mesmo lugar, para a harmonia e constituição do mesmo corpo e para a ressurreição e vida do que fora antes morto ou totalmente dissolvido. Não me parece oportuno demorar mais sobre este assunto, pois ao menos para aqueles que não sejam meio feras, a decisão é manifesta.

A ressurreição só depende do querer de Deus.

9. Embora haja muitos outros pontos úteis para a presente questão, no momento não quero falar daqueles que se refugiam nas obras humanas e nos homens que as fazem, mas não são capazes de refazer aquelas que se quebram, ou com o tempo envelhecem, ou se destroem de outro modo, e com a comparação dos oleiros e carpinteiros procuram demonstrar que também Deus não quer ou, embora quisesse, não pode ressuscitar os corpos mortos ou já dissolvidos. Contudo, não percebem que com tais raciocínios ofendem a Deus como os mais perversos, colocando no mesmo nível os poderes daqueles que são completamente diferentes, isto é, igualando as substâncias com os que delas usam e as obras de arte com as naturais. Ora, dar importância a tais objeções não careceria de repreensão, pois de fato é idiotice deter-se para refutar o que é superficial e vão. Muito mais glorioso e verdadeiro é dizer que o que é impossível para os homens, é possível para Deus. Se a razão, através deste único argumento glorioso e por tudo o que anteriormente foi examinado, demonstra a ressurreição como possível, evidentemente ela não é impossível. Além disso, também não é certo que Deus não a queira.

Não há nenhuma injustiça na ressurreição

10. ,Com efeito, o que não se quer não é desejado porque é injusto ou indigno. Por sua vez, a injustiça se considera ou em relação à própria pessoa que ressuscita ou em relação a outro fora dela. Mas é evidente que com a ressurreição não se causa prejuízo aos que estão fora do homem, nem a nada daquilo que se inscreve no rol dos seres. De fato, nem as naturezas inteligíveis podem receber algum prejuízo da ressurreição dos homens, pois esta, para existir, não supõe impedimento ou prejuízo ou injúria de qualquer tipo; também não pode receber prejuízo a natureza dos seres irracionais ou a dos inanimados, porque, depois da ressurreição, não mais existirão. Quanto ao que não existe, não há injustiça. Todavia, mesmo supondo que existissem para sempre, também não se cometeria injustiça com eles pelo fato de os corpos humanos serem renovados. Com efeito, se agora estas coisas estão submetidas à natureza dos homens que necessitam de seus serviços, e postas sob o jugo e toda servidão, não se comete contra elas nenhuma injustiça e também não se cometerá quando os homens, tornados incorruptíveis e já sem necessidade de servir-se das coisas, estão se verão livres de toda escravidão. Se elas tivessem voz, também não poderiam queixar-se ao Criador por terem sido rebaixadas mais do que o justo em relação ao homem e por não alcançarem também a ressurreição, pois aquele que é justo não pode atribuir o mesmo fim àqueles que possuem natureza distinta. Além disso tudo, onde não existe julgamento sobre o justo, também não cabe discussão sobre injustiça. Finalmente, também não é possível dizer alguma injustiça em relação ao próprio homem que ressuscita. Este, de fato, é constituído de alma e corpo, e não sofre injustiça nem na alma, nem no corpo. Com efeito, ninguém de bom senso dirá que sofre injustiça na alma. Caso contrário, sem perceber, desse modo também condenaria a presente vida. De fato, se agora, habitando em corpo corruptível e passível, não se lhe faz nenhuma injustiça, muito menos se lhe fará, convivendo com outro incorruptível e impassível. Contudo, também não se agrava em nada o corpo. Com efeito, se agora o corruptível acompanha o incorruptível e não é agravado, evidentemente também não o será quando, incorruptível, acompanhará o incorruptível. Também não se pode dizer que seja de algum modo obra indigna de Deus ressuscitar e novamente reunir um corpo desfeito. Se o menos, isto é, fazer um corpo corruptível e passível não foi indigno, com maior razão o mais não o será, isto é, formá-lo incorruptível e impassível.

Resumo da I parte

11. Portanto, se pelos princípios, que são naturalmente primeiros e pelo que deles se segue, ficam demonstradas cada uma das questões propostas, é evidente que a ressurreição dos corpos desfeitos é obra possível, desejada e digna do Criador. Por aí também se demonstrou a mentira que se opõe a esta verdade e o absurdo da incredulidade de alguns. Que necessidade há de ressaltar a correspondência de uma coisa com outra e sua mútua conexão? Se é que se deva falar de conexão, como se houvesse entre elas alguma diferença que as separassem, e não seja melhor dizer que o possível é também desejado e que o que Deus deseja é absolutamente possível e conforme com a dignidade de quem o deseja.

Antes dissemos de modo suficiente que existe um raciocínio a respeito da verdade e outro para defender a verdade e qual a diferença entre um e outro, assim como a ocasião e para quem eles são úteis. Mas talvez não haja inconveniente, depois de ter atendido à utilidade comum e à conexão do que foi dito com o que resta por dizer, que novamente tomemos aqui o nosso ponto de partida. Ora, a um convém por natureza ser primeiro e a outro escoltar o primeiro, abrir-lhe o caminho e afastar tudo que se lhe opõe e dificulta a sua marcha. O raciocínio a respeito da verdade, necessário a todos os homens para sua segurança e salvação, tem a primazia por sua natureza, por sua ordem e por sua utilidade. Por sua natureza, porque nos proporciona o conhecimento das coisas; por sua ordem, pois existe naquilo e junto com aquilo do qual é indicador; por sua utilidade, enfim, porque é guia de segurança e salvação para os que conhecem. Em troca, o raciocínio para defender a verdade é inferior, tanto por sua natureza como por sua força, pois é menos refutar a mentira do que afirmar a verdade. Também é secundário por sua ordem,pois tem força apenas contra as falsas opiniões, e uma falsa opinião nasce de uma semeadura em cima da outra e de corrupção. Todavia, mesmo que isso seja assim, antepõe-se algumas vezes e acaba sendo mais útil, pois é ele que tira e limpa de antemão a incredulidade que aflige alguns e a dúvida ou falsa opinião dos que se aproximam pela primeira vez. Um e outro tendem ao mesmo fim, pois tanto aquele que refuta a mentira, como aquele que afirma a verdade se referem à piedade; isso, porém, não quer dizer que ambos são uma mesma coisa, mas que um, como disse, é necessário a todos os que crêem e a todos os que se preocupam com a verdade e a salvação; quanto ao outro, por vezes torna-se mais útil para alguns.
Seja dito isso, em resumo, só para recordar o que foi anteriormente exposto. Prossigamos com o nosso propósito, e demonstremos que é verdadeira a doutrina da ressurreição pela própria causa pela qual foi criado o primeiro homem, e os outros depois dele, embora não do mesmo modo; pela natureza comum dos homens como homens e, por fim, pelo julgamento que o Criador fará sobre os mesmos, conforme o tempo que viveram e as leis que observaram; julgamento que ninguém duvidará que será justo.



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