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domingo, 28 de abril de 2013

O nascimento da Igreja - A. D. Sertillanges


 
A Igreja, em Deus, é eterna – primeiro pensamento incluso no Verbo que será um dia o seu chefe, primeiro amor no Espírito que um dia lhe será a alma.

Em Cristo, o homem universal, a Igreja é também universal e, por conseguinte, onitemporal. Mas essa existência que atravessa todos os tempos não se manifesta nelas sempre da mesma maneira. Há um centro de atração que faz convergir os seus diversos estados para isso a que, com S. Paulo, chamamos de plenitude dos tempos, a saber, a vida histórica de Cristo, distinta da sua vida intemporal ou de influência.

Antes do seu nascimento, preparava-se e esperava-se o Cristo; depois, a humanidade vive dEle e desenvolve-lhe a obra. Assim com a vida religiosa, hoje em dia, não seria o que é se Cristo não tivesse vindo, assim também a vida religiosa dos séculos antecristãos não teria sido o que foi se Cristo não devesse ter vindo. E, enfim, já que tudo se subordina a essa obra, pode-se dizer que Cristo criou a história tanto para o passado como para o futuro. Sucede como se “no oceano das idades” – como teria dito o nosso Lamartine, - houvesse caído um imenso rochedo. A ondulação prossegue nos dois sentidos, e todo o mar vibra, sob a luz repercutida pelos milhões de espelhos que são as consciências dos homens.

Tal é o ponto de vista que desenvolvíamos no capítulo precedente, e que nunca se deve esquecer quando se trata da Igreja. O cristão individual tem toda razão de se lembrar disso, pois também é homem de todos os tempos, enraizado no Antigo Testamento, desabrochado no Novo, homem de hoje, de ontem e de amanhã, pelo simples fato de ser da Igreja.

Deixando agora de lado os efeitos retroativos da vinda de Cristo, temos de lhe estudar os efeitos imediatos, enquanto aguardamos os seus efeitos ulteriores.

Esta maneira de exprimir-nos mostra em que sentido se deve tomar o nosso título “O nascimento da Igreja”. Não se trata de um começo absoluto, como se, antes, a Igreja absolutamente não houvesse existido. De certa maneira, ela existia em alma e em corpo. Em alma, visto como o Espírito, que lhe faz todo o valor, trabalhava; em corpo, visto como o embrião judaico, concedido ao banho nutritivo das civilizações religiosas ou seculares do mundo antigo, era bem autenticamente o seu corpo antecipado.

Não era isso uma razão para que a Igreja não tivesse de nascer. Nós também nascemos depois de termos vivido no seio de nossas mães e fincado as nossas origens no coração das gerações.

Cristo, dado ao homem por uma vontade eterna, vontade que tivera consequências espirituais desde sempre, e mesmo, não me posso cansar de repeti-lo, consequências históricas, o próprio Cristo, digo, desta vez ia revestir a existência histórica, surgir das suas preparações e encetar o futuro.


Foi em Belém, numa manjedoura de ruminantes, sob um abrigo de natureza em pleno céu, em face de uma planície constelada de humildes fogos, porém dominada por aqueles outros fogos que Abraão contemplava como símbolos de sua raça, foi aí que, premido pelo amor, propondo-o Deus e aceitando- o homem na pessoa de uma pureza e de uma humanidade todo-poderosas, foi aí que o fruto maduro da história aí irrompeu. O grão do futuro, a esperança alimentada pelos séculos lá estava, sob a forma de uma criança que uma mãe, fecunda por obra do Espírito universal, amamentava.

Esse seio de virgem não era porventura a figura da humanidade em trabalho, elaborando uma comida que o Cristo coletivo, a Igreja, absorveria em breve, para crescer? Enquanto isso, o minúsculo Filho do Homem vivia dessa comida, ele primeiro de seus irmãos, diz o Apóstolo, primeiro a ser nutrido da medula do passado, humanidade nova e antiga por ele só, a título de Filho do Homem, a título de segundo Adão, mas trazendo em si o que podia renovar, já que criara, trazendo em si a plenitude da própria divindade.

Por toda parte a humanidade procurava outrora o seu Deus: nesse dia, se seus olhos pudessem ter-se aberto, ela o teria contemplado em si mesma. Esse Deus, que a envolvia desde sempre de uma influência ativa, mas parcial ainda e pouquíssimo reconhecida, furara um ponto “a parede” (Ezequiel, VIII, 8); irrompera a massa humana e, pela deificação pessoal de um de nós, começava a operar a deificação coletiva.

Os potentados da antiguidade, quer se chamassem Ptolomeu, Antíoco, Augusto ou mesmo Nero, viam anunciar e saudar o nascimento deles como o inicio de uma idade áurea, como o penhor de uma felicidade a vir sobre a terra. Aqui, a verdade substitui-se às ficções, e a idade de ouro eterna, definida pela síntese de Deus e do homem na religião autêntica, acaba de achar o seu instrumento substancial. Jesus será o ponto de ligação, o elo intermediário, semi-humano, semi-divino, que unirá o que se trata de unir. Como repreender-se-á que ele diga em seguida: “Ninguém vem ao Pai senão por mim” (João, XIV, 6), e reciprocamente: “Ninguém pode vir a mim se meu Pai não o atrair” (João VI, 44).

O nascimento da Igreja será, pois, de certo modo, o nascimento de Cristo, visto haver identidade solidária entre o grupo organizado e Aquele que é estabelecido espiritualmente chefe de raça. “O Estado sou eu”, dizia Luiz XIV; com mais verdade poderá Cristo dizer: a Igreja sou eu; não entendendo isto da sua humanidade individual, mas de todo o corpo de que a sua humanidade é a cabeça.

Mister se fará apenas que esse corpo de Cristo, como efetivamente lhe chama São Paulo, esse Cristo desabrochado em grupo, socializado, ache suas condições definitivas. Até então ele vivia em estado difuso no paganismo e em estado embrionário no judaísmo: tratar-se-á, como dirá mais tarde S. João, de congregar em um os filhos  de Deus dispersos (João, XI, 52).

Repito, havia filhos de Deus em toda parte. As Igrejas nacionais ou domésticas ofereciam-lhes abrigos provisórios; a sinagoga fornecia-lhes uma representação e um ponto de concentração, oficial desta vez, mas insuficiente, porque unia mal; unia só pouca gente e em condições que não eram exclusivamente religiosas, já que era preciso filiar-se ao povo, por uma espécie de naturalização, para se filiar ao culto. Derrubar esse templo para substituí-lo pelos domínios do Espírito de que o templo cristão será o servo e o símbolo, eis a obra.

“Vem a hora, diz o Salvador à Samaritana, em que não será nem sobre esta montanha nem em Jerusalém que adorareis o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos Judeus. Mas vem a hora, já veio, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” (João, IV, 21-25). Achamos aí, em três tintas justapostas, todo o mapa religioso do mundo: a religião dos pagãos, em que se erguem templos de ocasião, adoradores daquilo que ignoram (o Deus ignoto de S. Paulo); a região judaica, onde o edifício salomônico abre suas portas ao verdadeiro Deus, mas fecha seus muros ao mundo; finalmente a região cristã, onde o templo aberto ao espiritual, às dimensões do universo, já não passará, materialmente, de um símbolo e de um auxílio.

Compreende-o a arte cristã quando, na medida do possível, sintetiza no templo cristão ideal, que é a Catedral, a criação em todos os seus domínios. O templo eucarístico é tanto mais templo quando melhor se parece com esse cosmos divino em que toda criatura unida a Cristo adora em espírito e em verdade.

Vem a hora, diz o nosso texto e já veio. Que quer isso dizer? Quer dizer que, estando lá Cristo, já veio, nele, a hora de tudo o que deve ser. Essa hora veio desde Belém. Vem, entretanto, porque essa existência de Cristo, que inclui em si a obra universal, ainda não se tornou uma ação e não está coroada pelo dom supremo.

Eis, porém, que Belém restitui a Nazaré o seu tesouro. Tendo-o visto crescer em sabedoria e em idade diante de Deus e diante dos homens (Lucas, II, 52), Nazaré passá-lo-á a Cafarnaum, a Betsaida, a Tiberíades e às outras cidades galileias. A Galileia, infiel, cedê-lo-á a Jerusalém, que o crucificará fora dos muros, como que para simbolizar a universalidade do seu sacrifício. Enquanto isso, a vida oculta desenrola-se, porque convém que a obra individual de Cristo se prepare no silêncio e na obscura meditação, como a obra coletiva que ele enceta na noite dos séculos.

Daí, tal como das profundezas do silêncio noturno se lança pela manhã o sol, o “noivo eterno” da humanidade deixará a sombra nupcial para correr a sua carreira.

Como sempre, ele começa pela provação. Hércules entre o vício e a virtude é símbolo universal. Isento de toda tendência para o mal, Jesus nem por isso deixa de ser sujeito, como todos, aos assaltos do mal. O mal, para ele Cristo, seria esquecer-se de que é Cristo, isto é, homem de todos, e trabalhar para si mesmo. “Faze que estas pedras virem pães”: atira-te do alto do templo, e apare-te o teu Deus; conquista, visando uma realeza pessoal: tal é a tentação de Cristo.

Mas não! O homem do Reino de Deus, que é universal, deve guardar para obra universal o poder que dispõe. O homem do Reino de Deus, que consiste em se unir a Deus, deve consultar a Providência, em vez de lhe impor seus caprichos. O homem do Reino de Deus, que é interior, não deve comportar-se como conquistador, como se o Reino fosse deste mundo. O Reino é neste mundo que lhe impõe as suas condições; é neste mundo como no outro, na terra como no céu, visto que orienta o destino total; mas não é deste mundo, não detendo suas ambições sobre os objetos das nossas preocupações temporais e excluindo o mal.

Após essa tríplice prova simbólica, o tentador é enxotado com a tentação, e a natureza do reino de Deus na terra, tal como deverá realizá-lo a Igreja, é fixada. Jesus vai pregá-lo. O seu batismo à beira do Jordão é que lhe dá a sua consagração de pregador.

Escutai-o, diz a Voz, e sinais visíveis oferecem como que o aparato de uma sagração. Ele foi sagrado pelo Espírito Santo e pela virtude de Deus diz São Pedro (Atos, X, 38). Essa virtude revela-se nas pregações de dois anos e meio, mal três, num minúsculo teatro, ao qual se têm emprestado encantos assaz incertos.

Tem-se sonhado muito sobre essa Galileia que não ousa mais viver, que se consola de haver perdido o seu Deus rolando sobre as rochas onde ele pregava ondas de verdura, e retraçando com loureiro em flor o sulco da sua barca que ia de margem em margem. Mui diversa foi, porém, a realidade no tempo de Jesus. A pregação do “rabi nazareno” não é a pastoral que Renan descreveu; é um labor áspero, numa áspera terra, no meio de campônios secos, supersticiosos, violentos, que após um momento de entusiasmo querem precipitar o seu profeta do alto de um rochedo, depois fazê-lo rei, depois fazê-lo seu provedor, depois, que sei? E que acabam por obrigá-lo a ir-se embora com um adeus de maldição.

Não importa. Sabemos que a literalidade dos acontecimentos tem na vida de Jesus uma importância imensa, mas no final das contas secundária. Essa vida é um símbolo, símbolo real e ativo, sacramento cujo alcance excede infinitamente o alcance dos fatos materiais em que se apoia. O Sermão da Montanha sem dúvida é pronunciado perante algumas centenas de pessoas: nem por isso deixa de se dirigir ao universo, e é por este ouvido. A semente lançada sobre os rochedos acha logo de início algumas fendas onde germinar, e o resto ressalta para ir fecundar a terra.

É notável que Jesus não tenha procurado sair de seu pequeno país. Confinou-se num espaço que se atravessa em dois dias de marcha. Seus primos lhe diziam: Se fazes tais coisas, mostra-te ao mundo! (João, VII, 4). Era o clamor da evidência. Mas ele não escutava nada dessa pretensa sabedoria. Abordava o universo por um ponto, sabendo que o fluido divino saberia passar desse ponto a todos os outros.

O mundo não é assim tão grande. O verdadeiro obstáculo à ação moral não são as distâncias. Um mínimo de tempo e de espaço basta ao Salvador para conquistar o tempo e o espaço em toda a sua amplitude. Um ponto que se move com velocidade infinita ocupa a imensidade, observa Pascal: é o caso de Cristo exercendo a sua atividade celeste. Um ponto segundo a extensão, a imensidade como zona de influência.

Os homens tratam de durar e estendem-se o mais possível, porque têm apenas os seus dias medidos e a sua estatura para se igualarem à sua obra: Cristo dispõe da estatura de Deus e da duração de Deus: não necessita estender-se. Ele é, e isto basta; ele diz, e sua palavra acha o seu caminho por si mesma. A sua vida histórica está para com a sua vida segundo o espírito em mera proporção infinitesimal. Galileu e pregador de três anos, é o bastante; todo o plano religioso universal tem aí suas ligações.

O Mestre prega pois, e o que ele diz é a Boa Nova, assinalando a ideia central da sua obra.

A essência do cristianismo, sobre ela muito se há dissertado; não é sem razão, conquanto seja às vezes de maneira a mais desarrazoada. Está aí, com efeito, o tudo da Igreja, visto ser a sua ideia vital. A ideia vital é o tudo de um vivente; é a lei de toda a sua atividade; a não ser o caso de desvio acidental, ela torna a achar-se em tudo o que ele faz como em tudo o que ele é; é a sua “alma”. Isso a que chamamos alma, esse princípio interior da nossa unidade e da nossa orientação ativa, outra coisa não é senão uma ideia, real e substancial, ideia, dirá Claude Bernard, diretiva de todas as manifestações da vida.

Na Igreja, segundo a teologia católica, alma é o Espírito Santo. Mas ainda assim cumpre saber sob que forma o Espírito Santo entende de se dar a nós na Igreja. Não sucede com essa alma, alma universal e transcendente a todas as coisas, como sucede com uma alma individual, que se proporciona exatamente àquilo que ela move. O Espírito Santo nos excede e acha em nós um mero domínio parcial. Demais, se ele nos penetra, é sem nos absorver, ao passo que a alma individual absorve na unidade de uma substância indivisa aquilo que ela anima. Resta, pois, a questão de saber o que é que o Espírito divino quer de todos nós, constituídos em Igreja, e o que é que nos traz. É isso, propriamente, o Evangelho.

O Evangelho, a Boa Nova, é assim chamada a priori, porque um desígnio divino é, por essência e inevitavelmente, um desígnio de amor. A não ser que o homem o estrague! Mas trata0se aqui do desígnio primeiro, e a este nível, não intervindo nenhuma defecção, o amor e a felicidade só se separam se, entre os dois, desfalecesse o poder.

E qual é a boa nova anunciada? É que o homem, desde sempre, foi chamado à intimidade divina; que esse desígnio, longamente desconhecido, vai ser reatado e acha seu cumprimento decisivo na pessoa de Cristo “princípio” e “pedra de ângulo”, “caminho, verdade e vida” (Cf. João VIII, 25; Mt, XXI, 42; João, XIX, 6). Trata-se, pois, ao mesmo tempo, de uma intenção divina e de um fato divino; trata-se, em consequência, de uma ação, de uma lei, de um sistema de meios, e, necessariamente, de um ambiente apropriado à fecundidade do fato, à aplicação da lei, à utilização dos meios, à realização da intenção inicial.

No tempo, o advento de Jesus abre a fase definitiva do reino de Deus; o seu segundo advento deve encerrá-lo, julgar-lhe os efeitos e eternizar-lhe os fins.

Jesus traz o levedo que fará fermentar a massa humana; cultiva um campo onde brotará também joio; lança uma rede que apanhará peixes bons e maus, enquanto não vem a separação. E isto quer dizer que ele se propõe, e poupa as liberdades.

Quanto ao essencial, a saber, espiritualmente – pois Deus é Espírito e suas obras são, antes Ed tudo, obras de espírito -, o reino de Deus está em nós desde que nos demos a Deus e à obra de Deus sem restrição pecaminosa. Historicamente, visivelmente, o reino de Deus será estabelecido desde essa primeira geração (Mt XXIV, 34), porquanto o grão será semeado, Cristo provado, a sociedade fundada, o Espírito difundido e os sinais fornecidos: ressurreição de Jesus, ruína de Jerusalém e abolição do antigo reino provisório.

Para entrar no reino, o que antes de tudo é necessário, por oposição ao judaísmo carnal, são as disposições do coração. Importa primeiro compreender-se a si mesmo, ter consciência da sua natureza real e completa. “Reconhece, ó cristão, a tua dignidade”, dirão os nossos Padres. Em seguida, é preciso rematar-se, seja como indivíduo, seja como grupo. Enfim e desde o inicio, a fim de se compreender deveras e de se realizar plenamente, o homem é chamado a ultrapassar-se para entrar em sociedade intima com o Pai, o Filho e o Espírito.

Compreender-nos é sabermos que, nascendo na terra, somos um ser de essência celeste: homo coelestis (I Co XV, 47); que, sujeito ao tempo, somos um ser de eternidade.

Realizar-se, rematar-se, é, como indivíduo, dirigir o seu desenvolvimento no sentido daquilo que faz alcançar o seu fim, e, já que somos celestes, desenvolver em nós o celeste; já que somos feitos para a eternidade, preparar em nós a eternidade, preferindo a todos os valor que perecem no tempo os valores eternos: Homens carnais, não busqueis o pão que perece, mas o pão que fica para a vida eterna (Jo VI, 27). E, como grupo, realizar-se é elevar-se até à consciência da sua unidade e tirar daí as consequências: amor mútuo, amor organizado, justiça fraterna que superabunde em relação à justiça dos pagãos e em relação à pretensa fraternidade, que não passa de uma coesão dos nossos pós. Pai, que eles sejam um como nós. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, sejam eles também um em nós. (Jo XVII, 11, 21).

Enfim, ultrapassar-se, por uma vida em comum com seu Princípio, é aceitar a graça e merecer-lhe o crescimento. Se alguém me ama, meu Pai também o amará, e nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada (Jo XIV, 23). Porém primeiro, se vós me amais, observai meus mandamentos (Jo XIV, 15). E por isto sobretudo, por isto essencialmente, se reconhecerá que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros (Jo XIII, 35).

Essa habitação misteriosa do divino em nós, juntos, esse renascimento em Deus de todo o grupo humano, é que prepara e permite a ascensão inaudita de um pequeno ser ao contato imediato do seu Princípio, e essas sublimes intuições que são o fundo da vida celeste prometida. “A vida eterna é que eles te conheçam, a ti único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste” (Jo XVII, 3).


Mostrar tudo isso, em minúcia, nas palavras de Jesus – sentenças, discursos ou parábolas -, não temos que vagar para tanto; mas, pelos nossos apóstolos, pelos nossos Padres e pelos nossos teólogos, sabemos que nelas se acha a substância disso³.

Dissemos que o passado tinha feito prevê-lo e olhe preparara o desabrochar: por isso Jesus se refere muitas vezes ao passado, embora assinalando as diferenças. Faz ressaltar o que há de bom nos meios pagãos, exaltando o publicano virtuoso e o Samaritano caridoso. Abstém-se de condenar a lei, dizendo que vem apenas aperfeiçoá-la. Superior a Moisés, nem por isso deixa de lhe ser o continuador, e, se pode levá-lo mais longe, é que o coração duro dos homens foi amolecido lentamente pela penosa experiência da sua impotência. Agora, o progresso vai declarar-se. O que o mundo pagão autorizava, Jesus condena; o que Moisés concedia à dureza dos corações, Cristo recusa-o.

A ação divina no mundo é de uma continuidade que a sua matéria condiciona e perturba frequentemente, mas que tende a subir. Já que hoje os tempos estão maduros pra uma transformação profunda, cumpre organizar os méis desta. Faz-se mister uma alma nova aos humanos, ei-la: O Espírito do Evangelho. Mas, para que essa alma trabalhe, é preciso, como dissemos, que organize para si um corpo. Sucedendo ao corpo plasmático das antigas organizações, ao corpo embrionário constituído pela sinagoga, torna-se necessário agora um corpo religioso que corresponda à idade perfeita das revelações, à vida plena da grande obra. É esse corpo que vamos ver brotar sob a ação humilde, harmoniosa e pejada de imenso porvir que devemos agora contemplar.


II


Quando se diz que Jesus Cristo fundou a Igreja, há quem peça para ver, no tempo dele, um grupo religioso semelhante ao nosso, diferindo apenas pela amplitude. Teremos de dizer até que ponto, filosoficamente, essa concepção é falsa. A Igreja, nos seus primórdios, tem apenas delineamentos; porém faz-no-los vez no próprio dia em que a ideia nova vital é lançada na sua matéria consciente.

Jesus faz-se reconhecer; fala, e a sua influência, que é uma lei de vida, apossa-se da matéria ambiente na medida em que essa matéria está preparada para recebê-lo. “Vem!” diz ele, e a pessoa vem (Mt VIII, 9; Mc X, 21; Jo I, 46). Ou mesmo, como no caso de Madalena, de Nicodemos, nada havendo ele pedido, acorre-se, reconhecendo nele o ideal que se procurava. Assim as substâncias que o turbilhão vital arrasta colocam-se sob a lei da alma.

A alma espiritual introduzida no mundo por Jesus vai assim, por atração, por conaturalidade, constituir para si um corpo. Ninguém vem a mim, dizia o Salvador, se meu pai não o atrair. Que é essa atração do Pai, se não é Deus vivo nas almas sob a forma de um apetite sobrenatural que ele provoca, e que em seguida saberá satisfazer, quando essas almas tiverem reconhecido em Cristo o meio de realizarem o que procuravam?

Essa atração interior constitui rapidamente a Jesus um grupo de aderentes, homens e mulheres, em número bastante grande, entre os quais emergem e se distinguem, nomeadamente escolhidos, setenta ou setenta e dois discípulos. Digo nomeadamente, embora nenhum catálogo autêntico nos tenha chegado; mas a cifra setenta (ou setenta e dois segundo os manuscritos) é dada por Lucas (X, 1), e alguns nomes sobreviveram, como Barnabé ou Sóstenes.

Um terceiro grupo mais restrito e especialmente eleito será o dos Doze, entre os quais Pedro, Tiago e João parecem formar ainda uma seleção. Enfim, Pedro revela-se como o chefe, o centro de unidade para o futuro, quando o centro eterno, Cristo, se tornar invisível.

Ora, Jesus toma bem cuidado de dizer aos que terão um papel no Estado espiritual por ele construído, que Ele os escolhe, e não apenas os recebe por uma espécie de acessão passiva (João XV, 16). Assinala assim a sua intenção, que é de lhes conferir um poder social. Intenção que aliás se revela em múltiplas palavras assaz conhecidas, palavras que não deixam dúvidas senão aos que dúvidas procuram.

E que a sociedade que ele assim funda não seja uma sociedade particular, porém a cidade universal das almas, é o que já assinala simbolicamente essa cifra doze, que corresponde às doze tribos, isto é, à humanidade religiosa provisória, ao novo Israel, à Igreja incoativa de que falamos, e também a cifra setenta, ou setenta e dois, que correspondia, segundo a tradição judaica, ao número das nações da terra, a que o Evangelho concerne. O próprio Jesus faz ressaltar esse simbolismo, prometendo aos Doze uma glória que ele figura por doze tronos, julgando as doze tribos de Israel (Mt XIX, 28). Julgar as doze tribos de Israel no fim dos tempos, é julgar o mundo, havendo-se este, graças à Igreja universal saída da sinagoga, tornado o prolongamento religioso de Israel.

Mil vezes tem-se feito notar que esses fundamentos da obra cristã, os apóstolos, não são uns letrados, uns filósofos, ou pessoas importantes nos seus grupos; são pessoas de pouca importância. Não que haja nisso o menor exclusivismo democrático; o Evangelho não é propriedade dos pequenos mais do que dos grandes; não se deixará que ele seja açambarcado por ninguém; mas, se – pelo espírito ou pela situação – devem os grandes ser mais tarde incorporados ao organismo constituído, é útil que eles próprios não sejam constituintes, para não parecerem usurpar o papel assimilador que pertence à ideia vital.

O estabelecimento da Igreja toma assim o seu ponto de partida. Simples lineamentos, mas com um espírito ativo e com centros de ação organizadora, que já se coordenam numa espécie de encéfalo, na pessoa de Pedro. É o embrião no inicio do desenvolvimento. Jesus experimenta-lhe, por assim dizer, a vitalidade e convida-o a tomar por si mesmo a consciência dela, confiando aos Doze, até aqui instruídos pouco a pouco, missões que servirão de prelúdio à conquista do mundo. Que isso esteja prenhe de todas as realizações e de todas as organizações ulteriores, fá-lo Jesus ver, e assinala simultaneamente a unidade, a significação transcendente e o futuro da sua obra numa circunstância que figura entre as mais solenes da história cristã.

Era em Cesareia de Filipe. Julgando chegada a hora de se declarar completamente, Jesus pergunta de repente aos Doze, depois de fingir interrogá-los sobre o estado da opinião pública no tocante à sua pessoa: E vós, quem dizeis que eu sou? A esta pergunta inopinada, é Pedro quem se levanta e quem, com o entusiasmo pronto que está na sua índole, mas, quanto ao fundo, inspirado de mais alto, exclama: Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo.

Feliz és tu, declara-lhe o Salvador, feliz és tu, Simão Bar-Jona! – e lhe declina os seus nomes de homem para convidá-lo a compreender que o que se passou nele não é do homem. – Não foram a carne nem o sangue, quer dizer, a educação doméstica ou a intuição humana, ainda quando trabalhasse sobre os dados que lhe fornece o espetáculo de uma vida divina, não foram a carne nem o sangue que te revelaram estas coisas, porém meu Pai que está nos céus. É preciso a intervenção dos céus para a palavra de fé tal como ela vem à autoridade em vista do grupo. Porquanto foi em vista do grupo, e como que já em seu nome, que Simão falou inspirado do alto.

Logo lho declara Jesus, e sua réplica é ao mesmo tempo uma espécie de recompensa pessoal e de definição da Igreja: E eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Falar assim não é fundar a Igreja num trocadilho, como levianamente disseram alguns; é dar o seu emprego natural a um nome simbólico atribuído desde o início a Simão, conforme o costume judeu, quando Jesus lhe disse, escolhendo-o: Tu que te chamas Simão filho de Jonas, chamar-te-ás Kephas, quer dizer, Pedro, ou Rochedo (Jo II, 42).

Portanto: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. A ideia de uma construção regular e durável é aqui nitidamente afirmada. Não se trata de uma assembleia de acaso, formada de próximo em próximo, mas de uma obra fundada que subsiste. E as portas do inferno não prevalecerão contra ela. As portas do inferno, quer dizer, as potências da morte, que triunfam de tudo o que é humano, que se fecham, indiferentes e fatais, sobre tudo o que a natureza ou o homem sós põem a lume; quer dizer, ainda, as potências do mal, de que Satanás é o tipo, e cujas cidadelas se erguem em face da cidade do bem. A Igreja não sucumbirá a nenhum desses ataques; a Igreja não morrerá, e seu fundamento, a sé de Pedro, durará tanto quanto ela. Tal é a promessa. “Fato curioso, observa Henri de Tourville, o desse homem da Galiléia, que não teve em sua pessoa nada de extraordinário, e a quem um amigo, aldeão de Nazaré, usando do mundo e do futuro como senhor, por sua simples autoridade e com uma palavra colocou no pináculo da história e à frente da humanidade”4.

Na continuação do texto, a função de chefe é figurada pelas chaves, insígnia do intendente ou mordomo de palácio. Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus, isto é, o poder de admitir ou de rejeitar os fiéis. No Apocalipse, é o próprio Jesus quem traz as chaves de Davi, como Grão Mestre do Reino de Deus. Aqui trá-las-á, por procuração o seu discípulo chefe, primeiro porteiro do Reino.

Esse reino evidentemente é a Igreja, visto que Jesus acrescenta: Tudo o que ligares na terra será ligado no céu, e tudo o que desligares na terra será desligado no céu. Esse poder de ligar e de desligar, que significa permitir ou proibir, é relativo às ações ou às coisas, assim como o poder de admitir ou de rejeitar é relativo às pessoas. Assim, o magistério de fé indicado pela primeira declaração do Mestre (como aliás por muitas outras palavras), e o magistério governamental implicado na segunda, são claramente definidos.

Tinhamos razão de dizer que um tal fato é central no estabelecimento evangélico da Igreja; ele serve de base à obra, com a sua forma hierárquica claramente centralizada, é necessária à ação espiritual predita. Tudo, partindo de uma Encarnação para se adaptar à natureza carnal ao mesmo tempo que espiritual do homem, tudo deve envolver em seguida no visível, e não no espiritual puro, isto é, no invisível. O que deve ser visto é a humanidade nova agrupada em torno de Cristo, redimida, unida ao Pai com sua própria unidade, animada pelo Espírito. Isso não é possível sem uma organização social, sem uma representação, sem uma diversidade de funções exprimindo a diversidade humana na unidade, à maneira de um corpo. E, como um é que manifesta melhor um, do mesmo modo que, no ponto de partida, tudo se concentra na unidade de Cristo, concebe-se que a representação principal de Cristo seja por sua vez unitária. Donde a eleição de Pedro, ponto de partida do Papado, Jesus não mencionou expressamente sucessão; mas criou o papel; mais tarde, como agora, bem forçoso era fosse esse papel desempenhado. O próprio Jesus coloca a duração de sua Igreja na dependência do Rochedo sobre o qual a funda, e di-la perpétua. Pode-se, pois, pensar que, se desde o início ele assim não houvesse disposto, isso se teria espontaneamente estabelecido mais tarde, bem longe de ser um desvio posterior, como pretendem alguns, e um plágio da autoridade romana.

Quando ao magistério sacramental, este resulta de outras declarações não menos precisas, das quais dentro em pouco encontraremos a principal.

Mas, antes das palavras supremas e antes do supremo apelo ao futuro, a instituição da Igreja necessita, no presente, de uma consagração dolorosa.

Os pactos sociais da antiguidade selavam-se sempre por um sacrifício. Por isso dizia-se: ferir uma aliança, matar uma aliança: ferire foedus, mactare foedus. Um sacrifício mais alto deve aqui intervir, porque a aliança entre Deus e o homem, em mira a fundar essa vida em comum que é a Igreja, requer da parte do homem um esforço de ascensão e de purificação que não pode ter lugar sem dor. O Filho do Homem assume-lhe o encargo coletivo, e acha-se preso por sua obra numa espécie de engrenagem onde deve necessariamente sucumbir.

Nos confins de todos os mundos, entre o passado e o futuro, entre a terra e o céu, entre a matéria e o espírito, entre a culpabilidade e a justiça, deve ele ser esmagado e sacrificado pela aproximação temível que ele tem por missão promover.

O passado não quer perecer; o futuro tem dificuldade de nascer; toda passagem renovadora é acompanhada de conflitos; todo nascimento é uma crise.

A matéria não quer ceder; o Espírito desarranja-a nas suas combinações e nas suas esperanças; ela vai resistir, e resistirá a ponto de Pascal poder dizer: Jesus estará em agonia até o fim do mundo. A sua agonia presente será causada pela resistência imediata de um meio corrupto, símbolo bem indicado daquilo a que o Salvador chamava o mundo.

Quanto ao céu e à terra, estes não podem juntar-se e unir-se senão no crisol do amor – amor reparador, em relação a um passado carregado de responsabilidades e de misérias; amor inspirador, prestimoso e vencedor em relação ao futuro.

Ora, esse amor deve ser visível e para sempre indiscutível. Ninguém ama mais, disse o próprio Jesus, do que aquele que dá a vida por seus amigos (João XV, 13). Em Cristo martirizado, Deus e o homem dar-se-ão reciprocamente essa prova. O homem morrerá por seu Deus; um Deus morrerá por seu Deus; um Deus morrerá pelo homem. Desse duplo selo do Testamento, o rótulo da cruz será o quirógrafo. Em hebraico, a língua do passado religioso; em grego, língua da civilização temporal; em latim, língua do poder viril e conquistador do Romano, poder-se-ão ler os perdões e as munificências celestes, as retribuições generosas e os esforços de uma criatura assim prevenida pelo amor.

Grandezas de carne, grandezas de espírito e grandezas de caridade, consoante a divisão célebre de Pascal, unificar-se-ão assim na caridade superabundante e mortal. O passado, sublevado em tempestade, por mais que julgue quebrar e suprimir o que considera ser antagonista, não fará senão desprender violentamente da árvore humana o grão de futuro que é Cristo, e, sepultando-o numa terra que ele próprio contribui para tornar fecunda, graças aos cuidados de uma Providência mais forte do que as suas cóleras preparará as futuras germinações.

Foi o que repetidas vezes Jesus procurou dar a compreender aos seus. Se o grão de trigo caído em terra não morre, dizia-lhes ele, fica só; mas, se morre, dá muitos frutos (João XII, 24). Cumpre dizê-lo, a esse pensamento eles eram refratários. O próprio Pedro, a despeito das suas declarações proféticas, antes por causa mesmo dessas declarações, cujo sentido profundo lhe escapava, Pedro exclamara um dia: Longe de ti isso, Mestre! E o mestre, voltando-se, lhe dissera: Retira-te de mim, Satanás, tu me serves de escândalo (Mt XVI, 23). Ele reencontrava no discípulo o Tentador dos seus primórdios, que o excitava a subtrair-se indene e glorioso a uma obra essencialmente mortal. Então, insistindo no sentido da sua profecia, o Salvador especificara: É necessário que o Filho do Homem sofra muito, e seja morto, após o que ressuscitará ao terceiro dia (Lc IX, 22).

Efetivamente, cumprido o rito, consumado o sacrifício e fornecida a prova, Cristo não tem razão para ficar no túmulo. Convém que saia dele, provando, pelo seu domínio póstumo sobre a morte, o seu domínio anterior, e em consequência o caráter generoso da sua paixão. Dou minha vida para retomá-la, disse ele, e ninguém ma rouba; mas dou-a eu mesmo; tenho o poder de dar e o poder de a retomar (Jo X, 17).

Tendo-a, pois, retomado após o silêncio misterioso dos três dias, ele retoma ao mesmo tempo a sua obra. A sua morte era um simples episódio. Longe de ser um fim, era o verdadeiro começo, visto que, indispensáveis como são as utilidades que dela virão, não se podia verdadeiramente começar senão depois desse aparente fim de tudo.

Eis que de novo Jesus aparece e fala. Quarenta dias de sobrevivência correspondem aos quarenta dias do deserto, enquanto ele preparava a sua missão. Então ele jejuava, privando-se de um alimento necessário. Agora, come sem mais ter fome, liberto das misérias mortais, porém querendo condescender e provar.

Os quarenta dias do deserto foram a transição entre a vida oculta e a vida ativa; os quarenta dias de sobrevivência serão a transição entre a vida individual e a vida de Cristo em seu “corpo” social. O Cristo individual mostra-se assim desaparecendo, voltando ao espiritual completo, e, se a sua vida terrena foi o último passado, se a sua morte foi o instante solene dos nascimentos, a sua sobrevivência é o primeiro futuro. O caminho doravante está aberto a uma obra que ele concebeu como Deus, aceitou em nome de todos como homem, e iniciou como síntese viva dos dois princípios que agora se trata de fazer agir.


***


Após a dupla lição de coisas da cruz e do túmulo glorioso, os discípulos estão maduros para uma colaboração consciente e efetiva. Jesus lhes fala como a quem de ora em diante pode ouvir. O Espírito virá, que lhes confirmará tudo.  Mas desde já ele, Jesus, lhes põe nos ouvidos palavras cujo som não mais poderá extinguir-se. Diz-lhes: “Todo poder me foi dado no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-as a guardar tudo o que vos mandei. E eis que eu estou convosco todos os dias até o fim do tempo” (Mt XXVIII, 18).

A presença misteriosa de que o Salvador aqui fala entende-se de várias maneiras. É a presença eucarística; é a presença interior pela graça que o Espírito Santo traz. Mas é também a presença social por procuração. Porquanto, tomando à parte Simão Pedro, Jesus lhe reitera solenemente os seus poderes. Diz-lhe: “Apascenta minhas ovelhas, apascenta meus cordeiros” (Jo XXI, 15).

O serviço da palavra de Deus pelos apóstolos e seus sucessores; a administração do batismo, o sacramento da entrada, que coloca o cristão na trilha de todos os outros sacramentos; o exercício da autoridade por um grupo que tem por chefe claramente designado Pedro e sua sequência sucessora (já que isso deve durar até o fim do tempo); tudo isso acha-se, pois, determinado. E tudo isso é a Igreja.

Alguns têm dito que essas palavras tão claras não pertencem à história, por nos virem de Cristo ressuscitado, o que, sem dúvida, no pensamento deles, quer dizer: de um Cristo de sonho. Mas Cristo ressuscitado é para nós coisa mui diversa de um sonho. Já não é mais, se se quiser, um ente histórico no sentido pleno do termo, já que a sua vida, doravante transcendente, escapa às leis do que se agita no tempo; mas é um ser historicamente agente, visto que se manifesta por fenômenos reais, insertos na trama da história, e que nela produzem efeitos. Aliás, as mesmas coisas ouvimos da boca de Cristo vivo temporalmente, e nenhuma razão permite pô-las em dúvida.

A Igreja nasceu, pois, realmente. Nascida era ela desde sempre no seu Cristo-Deus. Nascida era em Belém no seu chefe homem e Deus. Nasceu de ora em diante em si mesma como sociedade organizada de uma organização inicial, mas positiva. Estreia humildemente; é bem o pequenino rebanho de que falou o divino Mestre (Lc XII, 32). Mas a esse rebanhozinho ele prometeu um reino. O reino dilatar-se-á pouco a pouco na terra, segundo a lei de desenvolvimento progressivo que foi a do mundo antigo, mas com um elemento novo, perfeito em si, posto que indefinidamente perfectível em nós.

E o reino assim regido, ao mesmo tempo que preparará o futuro da raça, salvará, alma por alma, aqueles que quiserem submeter-se às suas leis. Procriará eleitos para encher o céu. O Reino dos céus terrestre: tal será o nome da Igreja “militante”. O Reino dos céus puro e simples: tal será o nome da Igreja “triunfante”. Um dia, eles se juntarão, quando Aquele que vai partir voltar, desta vez liame definitivo entre as duas séries de fatos que dividem a vida do homem: fatos temporais, fatos eternos; fatos materiais, fatos espirituais; fatos do passado e do presente, fatos do futuro.

É a segurança que, para acabar, mensageiros celestes dão aos Doze, depois que a nuvem de luz lhes furtou aos olhos o Senhor que sobre ao céu, sobre o horizonte de Jerusalém e do mundo.

Mas, antes, a série dos tempos religiosos deve desenrolar-se ainda sobre este solo. Os apóstolos e a Igreja têm de cumprir a sua missão do tempo: recrutar adeptos ao plano divino, regê-los, e, para isso, organizar-se, progredir, defender-se, estabelecer a obra no coração do tempo, e prossegui-la. É o que os veremos empregar-se com uma atividade e um êxito que evidentemente parecerão exceder o homem, tão eficaz será o Espírito deixado como sucedâneo divino por Aquele que acabava de pôr termo à sua presença visível.

O Espírito! O Espírito do Cenáculo com suas línguas de fogo, com o seu vento violento, com os seus dons e os seus presságios, dele se pode dizer que pela sua vinda, o seu coroamento à obra de fundação da Igreja. Realiza-lhe a Confirmação.

A ascensão e a sediação à destra do Padre rematam e levam ao perfeito a divina Pessoa dada à Igreja com “cabeça”; libertam-na da sua mortalidade e das suas outras fraquezas voluntárias: assim o corpo místico vem ao perfeito pelo dom integral do Espírito e pelas graças sociais do Cenáculo.

Como essas graças são o efeito dos méritos de Cristo, só são outorgadas na sua plenitude após o acabamento da obra meritória e da sua consagração celeste. Era por isto que Jesus dizia: “Se eu não for, o Paráclito não virá a vós; mas, se eu for, vo-lo enviarei” (Jo XVI, 7).

Ele vem. E não se pode negar que não haja nisso um milagre psicológico de primeira ordem. É o Espírito que torna de repente viris e clarividentes aqueles homens tão pueris, dantes tão inconscientes a respeito das realidades de que durante três anos foram circundados e que lhes fizeram o efeito de um mistério turvo; a respeito d’Aquele com quem viveram e a quem até o fim, de certo modo, não conheciam (Jo XIV, 9); a respeito da obra e da sua significação verdadeira, da vida e da morte de Cristo que por tantos lados foram para eles um escândalo, da sua própria ressurreição, que os deixou deslumbrados, esmagados de espanto, mas do que lucidamente convencidos; a respeito, enfim, do seu próprio papel, ainda tão mal julgado, tão mal aceito, e da parte deles objeto de tanto temor.

Eles têm agora a intuição de tudo. A breve irradiação de Cesareia de Filipe, não seguida de efeitos a ela proporcionados, seguida de uma negação, tornou-se em Pedro, e solidariamente nos outros, uma claridade sem trevas. Tantos ensinamentos, estímulos e preceitos docilmente recebidos, porém mal assimilados e mal harmonizados, unem-se num feixe. Empolga-os uma certeza que, deles, os pusilânimes de ontem, vai fazer uns heróis e uns conquistadores. É uma transformação radical. A alma deles iluminada poderia dizer como Paulina em Polieucto:

Vejo, sei, creio estou livre de ilusões.
E essa fé ardente, prática e comunicativa é a que vai transmitir-se; é a que já se manifesta na multidão ambiente, onde um vasto lance de rede testemunha a sua força; é a fé da Igreja recém-nascida; é a nossa. E é o Milagre da Igreja na sua consumação inicial.

Este termo inicia torna sempre, porque a Igreja está sempre no seu começo, como tudo o que é do Espírito. Mas enfim, tudo aqui é consumado em preparação se tudo começa como realização. Pela descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos, a Boa Nova evangélica pode, como o fará S. Paulo, definir-se plenamente “a virtude de Deus para a salvação dos que creem” (Rm I, 16). Os homens de todos os tempos terão parte nela em razão dos Doze assim investidos. A própria vida futura ficar-lhes-á a dever. Esses homens vêm a seu tempo, de um futuro eterno. Sem dúvida eles mesmos têm pensamentos mais humildes; obedecem; mas com toda certeza grande lhes é a esperança. Eles esperam, como Abraão, pela cidade de fundamentos sólidos de que Deus é o arquiteto e o construtor (Hb XI, 11), e, se, nesta nova fase do trabalho, eles não verificam mais do que o patriarca o efeito definitivo das promessas, sabemos que eles o viram e saudaram de longe (Ibid, 13)

3 – A este respeito, como a tantos outros, ler-se-á com incomparável fruto a obra tão preciosa do P. Lagrange: L’Évangile de Jesus-Christ, Paris, Gabalda editor.4 – Henri de Tourville, Lumiêre ET Vie, p. 218, Bloud editor.


- Retirado do livro "O Milagre da Igreja" de A. D. Sertillanges
 
 
 

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